Música, músicos e “monstros infames”

por João Luiz Sampaio 04/09/2023

Episódio recente envolvendo o maestro John Eliot Gardiner relembra como o meio musical, de maneira velada ou não, aceita o abuso e as mais diferentes formas de assédio como naturais

Um maestro deu um soco na cara de um cantor. 

Difícil encontrar imagem tão bem-acabada das relações de poder que se estabelecem no mundo da música clássica. Certo, talvez seja um caso extremo. Mas ele vem do mesmo lugar que outras formas de abuso, menos escancaradas e talvez por isso mesmo mais insidiosas. E cuja repercussão nos faz ver mais uma vez como as coisas se organizam.

Para quem ainda não viu a notícia: na saída para o intervalo de um espetáculo em La Côte Saint-André, o maestro John Eliot Gardiner incomodou-se com o barítono norte-americano Williams Thomas, que teria deixado o palco pelo lado errado do pódio. Nos bastidores, chamou aos berros sua atenção. E, então, deu-lhe um soco. 

Representantes de Gardiner afirmaram que o maestro sofria com o intenso calor e que a atitude poderia também estar relacionada a uma recente troca de medicações. Membros da Orquestra Revolucionária e Romântica afirmaram, por sua vez, que o maestro estava incomodado com o resultado artístico da apresentação e isso o teria deixado irritado.

Gardiner voltou para Londres e interrompeu sua participação na turnê do grupo por ele criado, passando a batuta para seu assistente Dinis Sousa, que no último final de semana encerrou a viagem com a apresentação de Les Troyens, de Berlioz, no Proms, em Londres. Gardiner, por sua vez, emitiu novo comunicado, cancelando todos os seus concertos marcados até o final do ano. “Estou dando um passo atrás para conseguir a ajuda especializada que necessito há algum tempo… Estou com o coração partido por ter causado tanta angústia e estou determinado a aprender com meus erros.”

Na mídia inglesa, chamou atenção a pouca surpresa perante o ocorrido. Jornalistas de diferentes veículos foram a suas contas no ex-Twitter compartilhar histórias de violência (não física) de Gardiner. Aparentemente, o maestro é conhecido por agredir verbalmente seus músicos e manter um clima pouco amistoso de trabalho. 

Em 2010, uma matéria do Financial Times abordou o tema e, questionado pelo repórter Andrew Clark, Gardiner respondeu: “Posso ser impaciente, fico nervoso, nem sempre agi com compaixão. Cometi muitos erros em meus primeiros anos. Mas não acho que me comportei de maneira tão hedionda como você ouviu. A forma como uma orquestra é constituída é antidemocrática. Alguém precisa estar no comando.”

Quatro anos mais tarde, o site Private Eye publicou relatos de agressões físicas de Gardiner contra um trompetista da Orquestra Sinfônica de Londres durante uma sessão de gravação. O caso foi repercutido pelo Spectator, que descreveu o episódio como uma “perda de paciência”, enquanto a orquestra limitou-se a dizer que um incidente havia acontecido, mas já estava esclarecido e superado.

Outras reações à recente agressão a William Thomas vieram com a famosa adversativa. Ok, ele agrediu sem ser provocado um músico, MAS, é um grande maestro, cujo trabalho pela música antiga tem sido fundamental, um legado que não pode ser deixado de lado por conta de um incidente como esse. Somos, afinal, todos humanos. No outro extremo, houve quem pontificasse com muita certeza: na verdade, Gardiner nunca foi tão bom regente assim. 

O ponto é: somos todos humanos. Mas não costumamos tratar assim grandes músicos que, por seu talento “sobre humano”, ganham passe livre para se comportar como quiserem. Agressões ou abusos são coisas comezinhas perante a contribuição que gênios dão para a nossa compreensão de obras daqueles outros gênios, os compositores. 

A ideia do artista como uma figura de exceção, cujo comportamento não deve ser julgado pelos critérios e leis destinados aos demais, não é mais do que uma construção à qual o meio musical segue apegada

“A omertá que encobriu esses comportamentos inaceitáveis está relacionada ao seu prestígio musical. Estamos a falar de um dos principais intérpretes vivos de Monteverdi, Handel, Bach, Beethoven e Berlioz, com dezenas de gravações essenciais de todos esses compositores. (...) É também um dos principais pioneiros da performance historicamente informada, tendo fundado três conjuntos lendários: o Coro Monteverdi (1964), os English Baroque Soloists (1978) e a Orquestra Révolutionnaire et Romantique (1989). A tudo isto devemos acrescentar o seu carisma altivo e requintado, que partilha com o orgulho de ser agricultor, depois de herdar o negócio da sua família em Dorset. E também a erudição que lemos em seu já citado livro sobre Bach e logo em outra monografia que está preparando sobre Monteverdi”, escreveu no El País o crítico Pablo Rodríguez. Omertá é um termo relacionado à lei do silêncio que reina entre os colaboradores de organizações mafiosas do sul da Itália. 

No Spectator, Igor Torovni-Lalic escreveu um artigo no qual, primeiro, elenca episódios ligados ao comportamento de Gardiner e ataca a hipocrisia do meio musical. “A verdade é que todos os que o contrataram (incluindo o Rei Charles III), todos os que trabalharam com ele, todos os apresentadores de rádio que permitiram que a sua música fosse tocada, e muitas, se não a maioria, das pessoas que assistiram aos seus concertos, sabiam de seu comportamento e não se preocupavam com isso. Por que não? Porque você não pode impedir que canalhas sejam extremamente talentosos.”

Mas, em seguida, Torovni-Lalic vai além, defendendo esse tipo de comportamento abusivo como necessário para a indústria. “Não quero convencê-lo de que pessoas más podem fazer boa arte – se você ainda não sabe disso, não pode mais ser salvo. A verdadeira questão é: as pessoas percebem as consequências daquilo que estão pedindo? Reduza o poder dos maestros. Desmantelem as estruturas pelas quais eles podem demonstrar tal arrogância e abusar do seu poder. Mas compreenda que se quiser que os maestros se tornem os marcadores de tempo sem rosto do século XVIII e início do século XIX, irá inevitavelmente remover grande parte da autoridade carismática que deu à música clássica a sua preeminência na cultura e na sociedade.”

É claro que 'monstros infames' podem ser grandes artistas. Mas devem ser responsabilizados por suas monstruosidades. É simples assim.

Há vários problemas na argumentação do autor. O mais evidente deles é colocar a inexpressividade como única opção à postura autoritária, o que equivale a defendê-la como necessária à atividade artística de qualidade. “No Times, Richard Morrison observa que ‘os jovens maestros de hoje tendem a ser tecnocratas bem-educados’. Já havia muitos assim quando comecei a ir a concertos nos anos 90. Concertos rotineiros de regentes contratados que fizeram carreira apenas porque eram bons em agradar os músicos me fizeram pensar se eu gostava mesmo de música clássica. Felizmente, todos nós tínhamos as incríveis gravações dos infames monstros de meados do século para nos refugiarmos (gravações que minam a ideia fácil que circula no Twitter de que ‘ser um bom maestro significa ser bom com as pessoas, e de que para obter o melhor dos músicos, você deve tratá-los bem’. Diga isso a Fritz Reiner.)"

Torovni-Lalic, talvez de forma involuntária, só confirma a noção de que a ideia do artista como uma figura de exceção, cujo comportamento não deve ser julgado pelos critérios e leis destinados a nós outros, não é mais do que uma construção. Uma construção arraigada, que se misturou à própria percepção que temos do fazer musical ao longo do século XX. Mas, ainda assim, uma convenção, um pacto entre os próprios músicos, o público e a imprensa. E que precisa ser desconstruído se queremos a atividade musical como parte de uma sociedade que deve refletir sobre o modo como está organizada. 

O soco dado por Gardiner altera em algo o valor da realização musical de seus trabalhos? Não. Porque essa não é uma questão musical e, sim, sobre um meio que, de forma velada, aceita o abuso e as mais diferentes formas de assédio como naturais. E o faz porque insiste no mito do maestro como forma de atrair atenção em meio à cena cultural (aliás, tem dado certo?); e porque organizações musicais ainda são verticalizadas demais, favorecendo em geral a centralização de poder hierárquico que não significa abusos necessariamente, mas os torna possíveis.

Em 2023, a existência de episódios como o do soco de Gardiner parecem ainda mais absurdos. Assim como as tentativas de justificá-lo em favor do bem mais elevado da qualidade artística. É claro que “monstros infames” podem ser grandes artistas. Mas devem ser responsabilizados por suas monstruosidades. É simples assim.

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John Eliot Gardiner [Divulgação/Chris Christodoulou]
John Eliot Gardiner [Divulgação/Chris Christodoulou]

 

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