“Continuarei sendo punido ou quem sabe terei ouvintes no futuro?” O compositor cearense Alberto Nepomuceno (1864-1920) já tinha morrido há muito tempo quando o escritor paulista João Silvério Trevisan colocou essa pungente indagação em sua boca, no livro Ana em Veneza, em 1994 – com uma angústia que parecia valer não para seu caso específico, mas, em maior ou menor grau, para todos compositores brasileiros, à exceção de Villa-Lobos.
Teve que passar um quarto de século desde a publicação do premiado romance de Trevisan, e quase cem anos desde o falecimento de Nepomuceno, para que o Brasil finalmente conseguisse dar uma resposta positiva a esse brilhante compositor e a seus pares. No site e na edição impressa da Revista CONCERTO, João Marcos Coelho explica, em detalhes, o projeto Brasil em Concerto, iniciativa visionária do compositor e diplomata Gustavo de Sá que prevê a gravação de nada menos que 30 CDs com o repertório sinfônico nacional – um projeto ambicioso, envolvendo as filarmônicas de Minas Gerais e Goiás e a Osesp, a gravadora Naxos, o Departamento Cultural do Itamaraty e a Academia Brasileira de Música.
O volume de abertura da série, que já está correndo o mundo, não podia ser melhor, contendo as três partituas orquestrais mais célebres de Nepomuceno: o Prelúdio de O Garatuja (1904), a Série Brasileira (1891) e a Sinfonia em sol menor (1893).
Como as histórias da música brasileira começaram a ser escritas durante o período de hegemonia cultural do nacionalismo musical, e como justificativa deste projeto, Nepomuceno nelas costuma aparecer como precursor do nacionalismo – rótulo que não é absolutamente injustificado, mas que empobrece o legado de um músico cosmopolita, informado e completo, cuja trajetória vem sendo paulatinamente reavaliada na última década, graças a estudiosos como Avelino Romero Pereira (autor de Música, sociedade e política: Alberto Nepomuceno e a República Musical. Rio de Janeiro, publicado em 2007 pela Editora UFRJ) e João Vidal (com seu Formação germânica de Alberto Nepomuceno: Estudos sobre recepção e intertextualidade, publicado pela Escola de Música em 2014). Nepomuceno é o mais brilhante representante da geração que, após a Proclamação da República, em 1889, rompeu com a tradição sacra, operística e italianizante que marcava a música do Brasil desde os tempos coloniais e, com base nas informações trazidas de Alemanha e França, gerou uma produção instrumental como não tivéramos ao longo do século XIX, e que serviria de paradigma e base para o que seria feito no século XX. Não seria despropositado ver na geração de Nepomuceno uma relevância, para a música, similar à que teve para a literatura um gigante como Machado de Assis (1839-1908), cuja assim chamada Trilogia Realista (Memórias Póstumas de Brás Cubas, 1881; Quincas Borba, 1891; Dom Casmurro, 1899), não por acaso, coincide cronologicamente com as partituras do compositor cearense presentes no atual CD, compartilhando com elas o status de divisores das águas estéticas que singrávamos por aqui.
Creio não exagerar ao colocar o disco da Filarmônica de Minas Gerais como marco fundamental na reavaliação crítica e recepção da obra de Nepomuceno. Se todas essas obras já tinham sido gravadas, nenhuma delas merecera um registro tão engajado e atento aos detalhes técnicos, sonoros e musicais quanto esse. Não sei se a Filarmônica de Minas Gerais é a melhor orquestra brasileira, mas certamente é a que possui a direção mais meticulosa, cuidadosa e profissional. Cuidando do grupo desde 2008, de forma presente, ativa e carinhosa, o maestro Fabio Mechetti não apenas é o responsável por uma programação interessante e equilibrada na Sala Minas Gerais, como vem moldando com apuro de ourives a sonoridade da filarmônica.
Não há como ficar pasmado, por exemplo, com a solidez do coro de metais do Prelúdio de O Garatuja. Ou com o refinamento das madeiras na Série Brasileira, dando aulas de fraseado e matizamento de dinâmica.
Mas o impacto maior mesmo – e, aqui, seria injusto destacar um ou outro naipe ou instrumento em particular – é oferecido pela Sinfonia em sol menor, a obra que, se não cronologicamente, pelo menos como relevância e ascendência, pode ser tida como a fundadora do sinfonismo brasileiro.
Pela retórica e gestual, a uma primeira audição, a influência mais perceptível é a de Brahms, trazendo à memória o fato de que Nepomuceno foi aluno, em Berlim, do brahmsiano Heinrich von Herzogenberg (1810-1856). Contudo, vale notar que, ao elencarmos as referências sofridas pelo compositor, não estamos falando de um mero epígono ou imitador, mas sim de uma mente criativa que se serve de ingredientes distintos para realizar sua síntese própria e pessoal.
Conhecedores do compositor cearense sabem que ele se servia dos elementos estéticos que tinha à disposição de forma eclética, e a aparente adesão a uma escola não excluía a utilização de características que pareciam pertencer à tendência oposta. Assim, a sinfonia também traz as ressonâncias wagnerianas que se fariam ouvir na ópera Artemis (1898, com libreto de Coelho Neto); e, no Intermezzo do terceiro movimento, não parecemos estar muito distantes do mundo do tcheco Antonín Dvorák (1841-1904), cuja Sinfonia do Novo Mundo, não custa lembrar, foi escrita nos EUA, no mesmo ano que a obra de Nepomuceno.
Talvez esteja na hora de nós, brasileiros, finalmente abraçarmos a “nossa” Sinfonia do Novo Mundo com o mesmo amor com que os norte-americanos vêm abraçando a de Dvorák. Afinal, o deslumbrante disco de Mechetti e da Filarmônica de Minas Gerais nos permite, finalmente, não apenas conhecer e avaliar, como desfrutar dessa obra-prima como ela merece. Agora é torcer para que a qualidade da gravação faça com que Nepomuceno, no ano que vem, em que se completa seu centenário de falecimento, receba homenagens à altura de sua relevância para a cultura brasileira.
O CD da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais está disponível na Loja CLÁSSICOS
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