Quem frequenta a Sala São Paulo está acostumado a ouvir muitos gritos de “bravo” ao longo do ano. Mas, quando essa expressão é abafada por sonoros “uhuuu”, é um indicativo de que o público ali presente tem algo de diferente do usual. No último dia 16 de dezembro, essa cena se repetiu sucessivas vezes durante as apresentações da Osesp. O culpado disso? Ludwig van Beethoven.
Ao reproduzir dois séculos depois o programa apresentado pelo compositor alemão no Theater an der Wien, em 22 de dezembro de 1808, o diretor artístico Thierry Fischer propôs uma experiência aparentemente incompatível com os acelerados padrões contemporâneos de consumo cultural: um tour de force orquestral com mais de quatro horas de música, toda ela assinada pelo mesmo autor.
Nos dias anteriores às récitas, a equipe de comunicação da Osesp reforçou o caráter único do evento e as qualidades de seu repertório triunfal, formado por algumas das obras mais emblemáticas de Beethoven, arraigadas no inconsciente coletivo por meio de inúmeras citações em filmes, séries e outras produções.
A reunião desses elementos inspirou um forte senso de desejo e fez o público comprar a ideia. Os ingressos se esgotaram com antecedência e, no Instagram, houve quem implorasse por um lugar nos concertos, fossem eles na versão fatiada, com sessões na quinta e na sexta-feira, ou na integral, no sábado, composta por duas sessões em sequência, perfazendo todo o programa original da fria noite vienense de 200 anos atrás.
Apesar de a primeira opção soar mais confortável para os ouvidos menos acostumados às salas de concerto, a segunda carregava consigo um potencial imersivo raro – e, por isso mesmo, singular. Com tanta gente reunida por tanto tempo seguido em torno de um objetivo comum, o Beethoven-Fest – como foi batizado – ganhou ares de culto com toques de festival pop.
Esses elementos estiveram presentes desde a primeira obra apresentada, a Sinfonia nº 6 – Pastoral, aplaudida de pé após introduzir a plateia ao universo beethoveniano com sua escrita narrativa bem delineada, aludindo a um dia no campo. A escolha dela para a abertura foi do próprio autor, que sabiamente a inverteu com a Sinfonia nº 5, pinçada para o início do programa noturno.
Até lá, o público ainda ouviria Camila Provenzale cantar a ária Ah, Perfido!, oitenta artistas do coro entoando o poderoso “Glória” de sua Missa em dó maior e o Concerto nº 4 para piano e orquestra, iniciado sob certa tensão após um celular soar justamente quando o solista suíço Louis Schwizgebel se preparava para tocar. Após alguns bons segundos de suspense para retomada da concentração, ele entregou uma delicada e precisa interpretação do instrumento carro-chefe de Beethoven, proporcionando mais um diálogo desafiador com a orquestra do que um embate com ela.
Finda a primeira parte do programa, às 19h20, seria necessário aguardar pouco mais de uma hora para a sessão seguinte. A estratégia da Osesp para manter o público aquecido (e também deixar a área de espera minimamente transitável durante o intervalo) foi dar a ele ainda mais música: um concerto bônus de câmara. Para não fugir do tema do dia, a peça foi o complexo Quarteto nº 7, também de Beethoven, com o Art String Quartet, formado por integrantes da Osesp.
A apresentação surpresa gerou um pouco de confusão entre as pessoas, divididas entre a sala de espetáculo, com a plateia ocupada em pouco menos da metade, e o burburinho do café, repleto de encontros e gente disposta a ver e ser vista. Por lá, havia quem comparasse as interpretações do dia com a da antevéspera, ressaltando o nível de interesse despertado pelo festival.
Após o intervalo, chegava, enfim, o momento mais aguardado da noite: o “pam pam pam pam” da Sinfonia nº 5. Com o cenário de celebração já previamente montado, não tinha como a plateia não vir abaixo em aplausos. De pé, próximo a um rapaz com camiseta da banda Black Sabbath, um senhor de terno ergueu o braço direito, montando com a mão o típico “chifrinho” ostentado pelos metaleiros como sinal de aprovação. É uma síntese visual da capacidade desse programa tão diversificado de fazer públicos distintos convergirem em torno de uma música verdadeiramente atemporal e que atravessa gerações, produzindo interesse renovado nas pessoas.
Daí para a frente, o clima de festa imperou 100%. Em um estalar de dedos, passou-se do peso solene do “Sanctus” da Missa em dó maior de Beethoven a um divertido improviso de Für Elise com toques de Tico-Tico no Fubá, interpretado pelo contrabaixista Pedro Gadelha, o clarinetista Sérgio Burgani e o fagotista Alexandre Silvério, para um fechamento apoteótico com a Fantasia Coral, reunindo todos os elementos que passaram pelo palco ao longo do dia, entre orquestra, coros, pianista e demais solistas, em uma coda virtuosa e frenética, antecipando elementos mais tarde presentes na Sinfonia nº 9.
“Aceitem felizes, belas almas, as dádivas da bela arte”, cantava o coro, poderoso, em uníssono. Depois de um dia tão intenso, é um imperativo que permanece como um lembrete da força mobilizadora da música. Um belo fim de temporada para a Osesp, com as melhores expectativas para o que virá em 2024.
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