Sala Cecília Meireles 2020

por Luciana Medeiros 01/12/2019

Espaço retoma vocação para a música de câmara com diferentes séries e com festival dedicado a Beethoven, para o qual serão vendidas assinaturas

A Sala Cecília Meireles fica no bairro da Lapa, no Rio de Janeiro, numa área central da cidade, repleta de lindos sobrados do século XIX, a maioria em estado de dramático esquecimento. De sua porta, à frente do verdejante Passeio Público, é possível ver o belo aqueduto erguido em 1723, ao lado do Convento de Santo Antônio, construído em 1608. São marcos arquitetônicos do Brasil colônia emoldurando um espírito boêmio que se instalou nas décadas mais recentes. Na inauguração da Sala, em 1° de dezembro de 1965, o crítico Eurico Nogueira França se lançava à imagem poética, descrevendo no jornal Correio da Manhã a proximidade do palco musical com a Lapa como “um anjo à porta de um lupanar”. 

Cinquenta e quatro anos depois, neste dezembro de 2019, a principal sala de concertos de câmara do Rio – e possivelmente do Brasil – tem anunciada sua programação para o próximo ano. Desde setembro, está de volta à direção do espaço o compositor João Guilherme Ripper, retomando a trajetória iniciada em 2004 e interrompida em 2015, quando ele assumiu a presidência do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Para 2020, Ripper desenhou festivais que abordam a música de Beethoven e Bach em espírito de ciclos – alguns, verdadeiras maratonas –, além do olhar sobre o Rio da belle époque, com sua francofilia. Séries sinfônicas, instrumentais e vocais também estão presentes, além de eventos educativos e projetos de formação. Entre os artistas do ano, Antonio Meneses, Rosana Lanzelotte, Clara Sverner, Quarteto Carlos Gomes, André Mehmari, Jean-Louis Steuerman, Leonardo Hillsdorf, Juliana Steinbach e Jaques Morelenbaum.

“Estabeleci como missão retomar a vocação da Sala como palco da música de câmara, um nicho do qual ela saiu nos últimos tempos, oferecendo arcos de programação com visão abrangente de compositores e períodos”, explica Ripper. “Quando se tem tudo, não se tem nada, e uma programação fragmentada impede a missão institucional de um equipamento como a Sala. Mesmo os permissionários, que alugam o espaço, têm que se encaixar num olhar da curadoria, e isso é natural.”

[Divulgação / Vitor Jorge]
[Divulgação / Vitor Jorge]

Festivais, séries, orquestras, pianos

A abertura do ano musical da Sala acontece no dia da música clássica, 5 de março, já homenageando dois compositores com data redonda: os cem anos de morte de Alberto Nepomuceno e os 70 anos de nascimento de Ernani Aguiar, com a Orquestra Sinfônica da UFRJ. Já os 250 anos de nascimento de Beethoven, além de perpassarem a programação em programas de recitais e orquestras, são celebrados com ciclos dedicados às integrais de sua obra de câmara: 32 sonatas, tocadas por sete pianistas em três fins de semana seguidos; trios com piano, sonatas para violino e piano, violoncelo e piano e os últimos quartetos. A ponte entre o alemão e Villa-Lobos ganha uma série à parte, que coloca lado a lado obras de formação semelhante, como o Septeto e o os Choros nº 7ISettimino, assim como a influência francesa na belle époque carioca, com direito a curso coordenado por André Cardoso e uma série Brasil-França.

Bach é outro homenageado, com a orquestra de câmara Johann Sebastian Rio executando peças referenciais, como os Concertos de Brandemburgo, e os eventos que mergulham no barroco – a nova edição de Baroque in Rio, a presença do Centro de Música Barroca de Versalhes com a Orquestra Barroca da Unirio e o privilégio de ter Antonio Meneses tocando as Suítes para violoncelo em diálogo com as peças encomendadas a compositores brasileiros com inspiração em cada uma das seis suítes. 

Séries de pianistas, de música de câmara e de música vocal mantêm a tradição no palco da Lapa; a programação das orquestras com o selo da casa reúne, além da UFRJ, a Petrobras Sinfônica, a Bachiana Brasileira e a Sinfônica de Barra Mansa. Um dos destaques da série dedicada à música contemporânea é o concerto do Abstrai Ensemble, com estreias encomendadas pela Sala, incluindo peça da espanhola Zulema de la Cruz. 

O instrumental brasileiro marca o espaço jazzístico e da música popular e crossover. Os eventos de música para o público infantojuvenil – ou “para todas as famílias”, como prefere Ripper – serão da responsabilidade de Tim Rescala, com seu divertido Blim-Blem-Blom, que passa a ser feito na Sala e transmitido pela Rádio MEC em sete sábados. 

Ripper também criou um programa nos bastidores que lhe é muito caro: pretende formar novos gestores para a música de concerto oferecendo um espaço para trainees. “Vou trazer jovens músicos que queiram aprender essa atividade, acompanhando o dia a dia e, no fim, programando eles próprios uma série de quatro concertos temáticos, descobrindo na prática a dor e a delícia de adequar repertório, verba, disponibilidades, estrutura.”

“Quando se tem tudo, não se tem nada. Uma programação fragmentada 
impede missão institucional”
João Guilherme Ripper, diretor

Reformas e autonomia 

A longa gestão anterior de Ripper promoveu profundas reformas na Sala, tanto no espaço físico quanto na viabilização financeira da programação. Subordinada à Fundação Anita Mantuano de Artes, a Funarj, órgão da Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro, a Sala esteve entre janeiro e setembro de 2019 sob a direção de Aldo Mussi, que acumulou a função com a presidência da Fundação Theatro Municipal. Com a chegada de José Roberto Gifford à Funarj, em setembro, o órgão ganhou nova autonomia e convidou Ripper para a direção da Sala.

Engenheiro de formação, há mais de trinta anos na gestão cultural, Gifford afirma à CONCERTO que sua missão é “resgatar a Funarj como era antes”. Discreto, está na equipe da secretaria desde 2003, época de Arnaldo Niskier à frente do órgão, depois de passar pela Fundação Rio e pela Rio Filme. “Chamei Ripper porque é a pessoa certa, é um trunfo para todos nós. O importante é que a Sala funcione como deve.”

Não existe autonomia sem financiamento, e essa máxima foi pedra angular do trabalho de Ripper na década em que reformulou a estrutura de funcionamento da Sala, fortalecendo a Associação de Amigos como braço captador de recursos. A programação anunciada para 2020 tem custo previsto de R$ 900 mil, inteiramente coberto pelos patrocínios por meio de leis de incentivo. “A partir de 2006, conseguimos bancar a programação com patrocínios, deixando à verba direta do Estado somente o pagamento de salários e da manutenção do prédio.” 

O compositor tem uma longa estrada na gestão cultural, com especializações na França – atividade iniciada sob orientação de Edino Krieger, quando foi estagiário do Instituto Nacional de Música e coordenador adjunto das Bienais da Funarte. “Eu estava no Museu da Imagem e do Som e assumi a Sala em 2004 a pedido de Arnaldo Niskier, que me ligou e disse: ‘Não aguento mais gente pedindo para ser diretor da sala’. Levei o Ripper e, quando vi que ele poderia ficar sozinho, voltei para o MIS”, conta Edino. “Minha ligação com a Sala é muito intensa, até porque a Bienal de Música Contemporânea nasceu lá, quando Myrian Dauelsberg, diretora em 1974, achou meu projeto numa gaveta do MEC e o realizou por lá. Isso, entre tantas razões emocionais e musicais, inclusive a perfeita acústica para música de câmara.”

“É a melhor acústica que um músico pode sonhar em ter... É a excelência artística com a eficiência prática”
Rosana Lanzelotte, cravista

Acústica

Aliás, outro evento extramusical do ano é uma participação na programação paralela do Congresso Mundial de Arquitetura, com debate sobre a reforma de 2010-2014 no Espaço Guiomar Novaes, com Tânia Chueke, responsável pela arquitetura, e José Augusto Nepomuceno, pelo restauro e pela acústica. 

No livro comemorativo dos 40 anos da Sala, escrito por Clovis Marques, o segredo da acústica louvada como perfeita é de certa forma revelado. O primeiro diretor da casa, Henrique Morelenbaum (“meu grande mestre de contraponto e composição na graduação e mestrado”, lembra Ripper), acompanhou a reforma do prédio construído no fim do século XIX para ser o Grande Hotel Lapa e que foi o cinema Colonial entre 1948 e 1961. Foi o quase arquiteto Morelenbaum que realizou exaustivos testes com instrumentistas no espaço, avaliando o projeto acústico de Hilton Hernandes de Faria. 

“Entre a madeira do soalho e o solo fora criada uma espécie de colchão de ar (…) repetido entre os foles sanfonados e as paredes laterais do auditório”, descreve Marques no volume. “Ainda surgiu a ideia do fundo do palco com formas trapezoidais de gesso, hoje marca registrada da Sala”, continua o jornalista. 

Na reforma de 2010, tomou-se um imenso cuidado com a acústica. “Fizemos avaliações musicais e medições com o Inmetro, a partir da percepção de que havia perda de frequências médias-graves na Sala”, conta Ripper. “Foi um longo processo para descobrir as causas dessa perda. Depois de investigações e debates, concluímos que o vilão da história eram as lâminas de madeira plissadas instaladas nas paredes. Por serem finas demais, vibravam por simpatia e absorviam justamente as frequências que sumiam do palco. Elas foram substituídas por painéis com madeira de muita maior densidade, vinda da Irlanda. E a acústica que era maravilhosa tornou-se excepcional.”

“Minha ligação com a sala é muito intensa, entre tantas razões emocionais e musicais, inclusive a perfeita acústica”
Edino Krieger, compositor

Rosana Lanzelotte, que integra a programação com seu evento Baroque in Rio, não se esquece de elogiar a acústica (“a melhor que um músico pode sonhar ter”) e, principalmente, a programação: “É o homem certo no lugar certo, com talento artístico e de gestão, e capitaneou a reforma maravilhosa. Hoje já se veem vazamentos, uma ou outra luz queimada… mas a equipe que ele leva funciona muito bem, é a excelência artística com a eficiência prática”, aponta a cravista.

O diretor garante que os danos pós-reforma são pequenos. “A impermeabilização da laje precisa de manutenção, mas o resto é parte do cotidiano de um espaço como esse. Nossos pianos são muito bons, incluindo o que foi escolhido por Jean-Louis Steuerman na Alemanha e bancado pela Associação de Amigos”, diz Ripper. 

Em 2020, a Sala vai lançar um primeiro sistema de assinaturas, somente para o Festival Beethoven, esperando que em 2021 possa ampliar a pré-venda. “Já começo a pensar no ano seguinte, quero óperas de câmara, tornar ainda mais robusto o programa de música contemporânea – afinal, em 2020 faremos um repertório quase todo dos séculos XIX e XX.”

Enquanto desenha sua agenda pessoal para 2020 (que inclui, por exemplo, uma peça sobre as Cartas portuguesas, encomendada pela Fundação Gulbenkian, um novo sexteto para o Sax Ensemble na Espanha e o lançamento do CD com sua ópera Domitila em Portugal), João Guilherme Ripper arruma milimetricamente o dia a dia na Sala para a máquina funcionar com máxima eficiência e mínimo desgaste. “Lançar essa programação agora é uma vitória, e quero crer que isso estimula outras instituições cariocas a fechar com maior antecedência seus projetos. É uma alegria a mais”, encerra. 

Detalhe do hall de entrada [Divulgação / Vitor Jorge]
Detalhe do hall de entrada [Divulgação / Vitor Jorge]