Acervo CONCERTO: ‘O guarani’, de Carlos Gomes

por Redação CONCERTO 13/02/2025

Texto de Lauro Machado Coelho publicado na edição de maio de 2000 da Revista CONCERTO

Da noite para o dia, um estrangeiro que estava em Milão desde 1864, com uma bolsa de estudos concedida pelo governo de seu país, viu-se transformado em um grande sucesso. A noite de estreia de II Guarany, no Teatro alia Scala, em 19 de março de 1870, cercou de prestígio o nome do brasileiro Antonio Carlos Gomes. Valeu-lhe a contratação como artista exclusivo do editor Francesco de Lucca, o título de Cavaleiro da Coroa da Itália, e a comenda da Ordem da Coroa Brasileira, quando a ópera estreou no Rio de Janeiro, em dezembro daquele mesmo ano. 

Transformar em ópera II Guarany, o romance de José de Alencar, publicado em folhetim durante o ano de 1857, era um projeto que Carlos Gomes já tinha antes de sair do Brasil. Mas só depois de tornar-se conhecido como autor de música para teatro de revista pôde convencer seu colaborador, Antonio Scalvini, a preparar para ele o libreto baseado no livro brasileiro. Scalvini não pôde terminar o poema; para acabá-lo, Gomes recorreu à ajuda de Cario d'Ormeville, autor do texto de Ruy Blas, de Filippo Marchetti, grande triunfo na temporada de 1869. O campineiro escolhera D'Ormeville pensando em dar à sua primeira ópera a estrutura de grand-opéra – o melodrama de estilo francês, de grandes proporções, com efeitos exóticos e cenas de balé –, que garantira o sucesso à obra de Marchetti pois, desde o sucesso da Africana de Meyerbeer, esse estilo estava em voga na Itália. II Guarany é, portanto, uma opera-ballo que, na sua origem, denota o desejo de aclimatar à experiência mediterrânea o modelo meyerbeeriano (e antes só praticado por italianos – o Verdi do Don Carlo, por exemplo – em espetáculos concebidos para Paris). 

II Guarany é uma ópera irregular. Tem números extremamente bem escritos, como a abertura inspirada no molde da Forza del Destino verdiana – que só em setembro de 1871 substituiu o curto Prelúdio original –, ou o apaixonado dueto "Sento una forza indomita". Mas há páginas, embora bonitas, de estrutura envelhecida para o fim da década de 1860, como a primeira ária de Ceci, que remonta a um estilo de coloratura comum em Donizetti. Ou momentos de gosto melódico banal, como a ária do vilão González, "Senza tetto senza cuna". Mas é inegável o vento novo que a inspiração de Gomes faz passar pela música italiana, com suas melodias que trazem o sabor tropical inequívoco das modinhas dos tempos imperiais, com procedimentos rítmicos e de acompanhamento que remetem à música popular brasileira da época. 

Na fase de transição 1870-1890, Carlos Gomes é, ao lado de Boito, Ponchielli ou Catalani, um nome fundamental para que se possa compreender a passagem do Romantismo para o Verismo. Embora a musicologia italiana tenha preferido, por motivos óbvios, atribuir esse papel ao Ponchielli da Gioconda (1876), é Gomes o primeiro nítido precursor das características temáticas e de técnica vocal da tendência realista, que eclodiria a partir da estreia da CavalleriaRusticana, de Mascagni (muito influenciado por ele). É principalmente na Fosca, de 1873, que esses prenúncios estão mais nítidos. Mas já no Guarany – a ópera que colocou o Brasil no mapa internacional da música – os temos claramente em embrião.

ACERVO_Maio de 2000

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