Texto de Lauro Machado Coelho na Revista CONCERTO de agosto de 1999
As melodias simples, diretas e o tom popular do Rigoletto dissimulam, à primeira vista, o fato de que ela é uma das óperas mais revolucionárias de Giuseppe Verdi, ruptura radical com as convenções oitocentistas. Não há mais as árias de entrada formais para os protagonistas; a exclusão das vozes femininas no coro dá ao drama um colorido escuro muito peculiar; e o recitativo é trabalhado de forma extremamente rica — em especial na cena do encontro do bufão com o espadachim Sparafucile, escrita num estilo que já anuncia a parola scenica da maturidade. Embora Victor Hugo não gostasse, a princípio, da ideia de um italiano adaptar a sua peça Le roi s'amuse (1832), ele próprio teve de se render, ao assistir à montagem parisiense, à evidência de que Verdi soubera dar às suas personagens a complexidade de caracterização que faz do Rigoletto, no dizer de David Kimbell, “um drama de gama expressiva quase shakespeariana”.
Foi com enorme prazer que Verdi iniciou, em novembro de 1850, a colaboração com Francesco Maria Piave escrevendo, para o La Fenice de Veneza, a ópera inicialmente intitulada La maledizione. Mas se até no ambiente mais liberal de Paris a peça de Hugo fora proibida, eram inevitáveis as dificuldades com a censura, só contornadas depois que, na terceira redação do libreto, o rei Francisco I do original foi trocado por um inócuo Duque de Mântua e as alusões mais flagrantes à sua libertinagem foram eliminadas. Mas o tom essencial, a mistura de lirismo e grotesco do drama de Hugo, fora preservado e oferecia, ao grande retratista da alma humana que é Verdi, matéria-prima da melhor qualidade. Depois da derrota, na mão dos censores, com o Stiffelio (1850), o Rigoletto foi uma grande vitória, pois a estreia, em 11 de março de 1851, foi um sucesso absoluto e, até o fim da década, a ópera tinha sido apresentada em 250 teatros do mundo inteiro.
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Acervo CONCERTO A vida de Giuseppe Verdi
Se alguns críticos da época acusaram o Rigoletto de possuir uma escrita vocal pobre foi porque, acostumados com os clichês virtuosísticos aos quais Verdi virava as costas, não souberam perceber a precisão com que o canto reflete a natureza das personagens. Basta pensar na deliberada banalidade melódica do “La donna é mobile”, retrato de um homem fútil, superficial, vaidoso; ou na forma como a coloratura, em “Caro nome”, deixando de ser mero efeito decorativo, transforma-se na expressão intensa da alegria adolescente com a descoberta do amor. Ou como, no quarteto “Bella figlia dell'amore”, do ato III, Verdi contrapõe, num número de conjunto admiravelmente montado, as emoções divergentes das personagens: o habitual discurso de sedutor do Duque; o ceticismo com que a experimentada Maddalena ouve suas palavras, não deixando porém de fazer o papel da seduzida; as sentenciosas admoestações de Rigoletto a sua filha; e a dor de Gilda ao ser finalmente confrontada com aquilo em que não queria acreditar. E sobretudo na grandeza dada à figura do deserdado – personagem verdiana típica – o bufão externamente grotesco, deformado, cheio de paixão e, apesar de tudo, de pureza interior.