Dança e fotografia

por Redação CONCERTO 14/03/2024

Por Adriana Pavlova [Adriana Pavlova é jornalista, crítica de dança, pós-doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Dança da UFRJ e colaboradora da Redes da Maré. Foi repórter do Segundo Caderno do Jornal O Globo e colaborou com o caderno Ilustrada da Folha de SP. É autora do livro Coreografia de uma década, os dez anos do Panorama RioArte de Dança (Casa da Palavra, 2001) e Maria Olenewa – A sacerdotisa da dança (Funarte, 2001).]

Quem nunca sonhou em congelar em sua retina para todo o sempre a movimentação fascinante de um bailarino em ação? Marca constitutiva da dança, a efemeridade é também o maior desafio para aquele que, como uma câmera fotográfica nas mãos, se propõe a retratar a plasticidade dos corpos de bailarinos e bailarinas em movimento, quer seja numa sala de ensaios, num estúdio ou no palco propriamente dito.

Trata-se de um trabalho com imagens tão visualmente sedutoras que, em geral, o profissional que tem a chance ou a sorte de se aventurar no mundo do registro de passos e gestos coreográficos parece não querer deixá-lo jamais: “A fotografia é uma atividade que necessita de envolvimento e comprometimento, que exige tempo para se chegar a algum lugar. Uma boa prática consiste em assistir aos ensaios, para entender a dinâmica das sequências coreográficas com a música e identificar os momentos de maior impacto visual e expressivo”, ensina José Luiz Pederneiras, fotógrafo oficial do Grupo Corpo desde os primeiros momentos de vida da companhia mineira, que em 2025 completa 50 anos de linóleos. 

José Luiz é o irmão mais velho da família que fundou o Corpo na própria casa onde todos moravam com seus pais, no bairro da Serra, em Belo Horizonte, em 1975. Com a experiência de quem vinha do registro de imagens de festas populares das cidades do interior mineiro, ele se juntou aos irmãos Paulo e Rodrigo, captando os primeiros instantes de criação da obra inaugural da companhia, Maria Maria, com trilha de Milton Nascimento e Fernando Brant, e coreografia do argentino Oscar Araiz – imagens em preto e branco históricas guardadas por ele em seu acervo. De lá para cá, foram mais de 40 obras em que esteve presente, retratando tudo, literalmente, desde os primeiros passos: “Acompanho as produções dos espetáculos em todos os níveis, desde as primeiras reuniões de trabalho, provas de figurino, bastidores, a construção e testes dos cenários, o desenvolvimento das coreografias, gravações de trilha sonora, ensaios gerais e finalmente a estreia nos teatros”, conta.

Seu método de trabalho inclui, antes de mais nada, muitas horas nas salas de ensaio: “É preciso olhar sempre o conjunto e os detalhes, procurando entender as habilidades individuais de cada intérprete, porque cada artista desenvolve uma linguagem corporal própria, com uma assinatura pessoal na interpretação. A percepção da diversidade do grupo facilita o trabalho do fotógrafo e fica impressa no resultado das imagens”, defende o fotógrafo, que no repertório da companhia tem dois espetáculos assumidamente preferidos.

Segundo ele, quando a identificação é maior, as fotos também se destacam: “Parabelo, com música de Tom Zé e José Miguel Wisnik, de 1997, e, mais recentemente, Gira, com trilha do pessoal do Metá Metá, são os que mais me marcaram. O fato de gostar mais torna tudo mais fácil, porque tem mais entusiasmo, a adrenalina sobe com a combinação genial de coreografia e música, e aí, naturalmente, dá mais vontade de acertar na fotografia”, completa.

Espetáculo Parabelo, em foto de José Luiz Pederneiras (divulgação)
Espetáculo Parabelo, em foto de José Luiz Pederneiras (divulgação)

No caso do fotógrafo Wilian Aguiar, cujo portfólio inclui trabalhos de dança contemporânea e balé clássico, o método sempre foi e continua sendo estudo, muito estudo. Para se firmar com um dos nomes referenciais da área em São Paulo, ele passou uma boa temporada mergulhado em livros sobre a técnica da dança, além de sempre ter feito questão de acompanhar o passo a passo da construção coreográfica nas salas de ensaio, buscando entender a assinatura específica de coreógrafos ou remontadores. “Dança é movimento e fotografia é estática. O grande desafio é conseguir registrar numa paisagem estática aquilo que o movimento de fato passou, a emoção do bailarino. Cerca de 80% do trabalho é estudar e entender a linguagem de cada coreógrafo, para não fazer uma foto simples, congelada”, diz ele.

Wilian já capturou imagens de trabalhos de grandes nomes internacionais do cenário contemporâneo da dança nos bastidores da São Paulo Companhia de Dança e do Balé da Cidade de São Paulo, como o tcheco Jiri Kylián, o espanhol Nacho Duato, o canadense Édouard Lock, a brasileira Marcia Haydée, sem contar uma extensa colaboração artística com Maurício de Oliveira, da Cia. Siameses. 

Dom Quixote, de Marcia Haydée, na foto de Wilian Aguiar (divulgação)
Dom Quixote, de Marcia Haydée, na foto de Wilian Aguiar (divulgação)

“Cada ensaio do Dom Quixote da Márcia Haydée, para a São Paulo Companhia de Dança, era uma aula. Lembro perfeitamente de como acompanhar sua mexida no corpo do toureiro, ajustando o giro dele, fez toda a diferença para eu entender qual era o melhor momento para registrar o movimento”, recorda Wilian, revelando que sempre procura ser o mais fiel à ambientação da obra, até porque sabe que em muitos casos, além de direção artística, serão os próprios coreógrafos ou remontadores a aprovar o material antes de ser usado para a divulgação dos espetáculos. “Não é uma leitura minha da obra, mas um retrato fidedigno do que acontece em cena, por isso é tão importante entender como os artistas criam as luzes também. Cada iluminação é um novo desafio. Lembro do Édouard Lock, por exemplo, cujo espetáculo tinha quinhentas, seiscentas trocas de luz. Fotografar uma obra assim é uma prova de Fórmula 1 para o fotógrafo. A gente fica exausto.”

Mas há também o fotógrafo que busca na dança justamente o lugar de experimentações artísticas, caso de Marcos Alonso, radicado em São Paulo, que há quase duas décadas trabalha com fotografia de publicidade e, há cerca de dez, começou a fazer ensaios livres com bailarinos em seu estúdio e não parou mais. Sua conexão, ele conta, é com a emoção dos intérpretes, e seu negócio são imagens criadas no estúdio ou tiradas nos bastidores das companhias: “Na minha fotografia de dança pode tudo, não tem regras. O bailarino está livre para criar ao meu lado e como, normalmente, quer ficar bem nas imagens, tudo flui tranquilamente. O importante é conseguir captar o que o artista está sentindo naquele momento em que está sendo registrado”, diz Alonso, que retratou recentemente as atividades de formação da São Paulo Escola de Dança, exibidas na exposição Entrega, em cartaz na própria escola.

Foto de Marcos Alonso para trabalho da São Paulo Companhia de Dança (divulgação)
Foto de Marcos Alonso para trabalho da São Paulo Companhia de Dança (divulgação)

Como não há uma formação específica voltada para a fotografia de dança, também acontece de os próprios performers, após pararem de dançar, mudarem para o lado das câmeras, para dar outro tipo de visibilidade aos grupos, companhias e intérpretes. É essa a história de uma das fotógrafas de dança mais atuantes em São Paulo, a paulista Silvia Machado, mas também de uma jovem e muito produtiva profissional das lentes no Rio de Janeiro, a ex-bailarina da Focus Cia. de Dança Carol Pires. 

Em 2003, aos 39 anos, Silvia era uma experiente integrante do Balé da Cidade de São Paulo quando sofreu uma lesão na cabeça do fêmur e teve que parar de dançar por um período. Com suas muletas, passou a assistir aos ensaios da plateia, ao lado dos diretores. Num dia desses, vendo-a tristonha, um dos assistentes ofereceu uma câmera para ela, pedindo que registrasse a preparação da companhia dali mesmo. Até aquele momento, o máximo que ela fotografava de dança eram os momentos de descontração durante as viagens do grupo. Pois depois dos primeiros cliques, Silvia começou a se divertir e, aos poucos, a gostar do resultado. E seus colegas também, tanto que naquele mesmo ano fez uma primeira exposição com as imagens captadas durante ensaios com o coreógrafo israelense Ohad Naharin. 

Ainda assim, era mais vontade de fotografar a dança que fizera parte de sua vida desde os 13 anos do que técnica propriamente dita, mas, claro, os anos e anos de cena fizeram toda a diferença. Em 2004, chegou a voltar a dançar por um curto período, no qual, quando não estava em cena nos espetáculos, pegava a câmera e registrava os trabalhos dali mesmo, das coxias: “Entender o movimento do bailarino para fotografar para mim nunca foi uma questão, meu problema era a técnica, que eu tive que aprender como autodidata e também conversando com referências, como Emídio Luisi, que foi quem sempre retratou o Ballet Stagium”, diz, dando conselhos aos aspirantes de fotógrafos de dança. “O balé ou clássico, a dança moderna ou contemporânea não se resume ao corpo, bailarino não é um atleta, antes de tudo é artista. O maior erro de quem começa a fotografar espetáculos de dança é captar somente o momento no qual o bailarino está saltando. Um artista também é suor, gesto, sentimento, tudo isso em cena. Ele é o intérprete da coreografia, do pensamento do coreógrafo. E ele é muito mais especial do que um grand jeté”, diz ela, referindo-se ao salto símbolo do balé clássico.

Corpos velhos, para que servem?, em foto de Silvia Machado (divulgação)
Corpos velhos – para que servem?, em foto de Silvia Machado (divulgação)

Para Silvia, não tem tempo ruim. Ela fotografa dança, teatro, balé clássico e grupos contemporâneos. No seu portfólio de cenas de espetáculos, normalmente registradas da plateia, há desde as grandes companhias radicadas em São Paulo, como Balllet Stagium, Cisne Negro, SPCD, Balé da Cidade, aos grupos e artistas independentes, como os coreógrafos Uxa Xavier, Luciana Bortoletto e Jorge Garcia, com quem também tem uma longa parceria criativa. Dos trabalhos recentes, destaca o acompanhamento do processo de concepção de Corpos velhos – Para que servem?, do coreógrafo Luis Arrieta, com os experientíssimos Célia Gouvêa, Décio Otero, Iracity Cardoso, Lumena Macedo, Marika Gidali, Mônica Mion, Neyde Rossi e Yoko Okada.

Já a carioca Carol Pires redescobriu a câmera fotográfica um tempo depois de deixar os palcos, para ser mãe, em 2017. Apesar de ter começado a dançar profissionalmente ainda adolescente, ela cursou a faculdade de jornalismo na PUC do Rio, onde sua maior fascinação era o laboratório fotográfico. O interesse voltou com força com a maternidade e se moveu para a dança quando a saudade da cena falou mais alto. Com a experiência de quem dançou com a Focus por mais de dez anos, Carol percebeu que havia todo um fascinante mercado de bastidores do mundo da dança a ser explorado por suas lentes, sobretudo depois de ter passado uma temporada registrando da coxia a remontagem de O lago dos cisnes, com o Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 2022.

“A dança era a minha forma de me expressar no mundo e a fotografia consegue potencializar a dança no lugar da imagem. O que me interessa é mostrar a história do bailarino até chegar à cena, o que o público não vê, o que está escondido. Eu mesma tenho pouquíssimas fotos dos processos de criação dos quais participei, dos bastidores e do camarim”, conta ela, que só em 2023 fez cerca de 50 ensaios fotográficos de bailarinos e companhias do Rio de Janeiro.

Bastidores de ‘O lago dos cisnes’, em foto de Carol Pires (divulgação)
Bastidores de ‘O lago dos cisnes’, em foto de Carol Pires (divulgação)

Outro interesse assumido é o foco em artistas mais experientes, tentando apresentar corpos de intérpretes mais maduros: “Cada vez mais me encanto com a força do tempo nos corpos dos artistas. É importante povoar o imaginário coletivo do público com esses outros corpos que dançam, que não são tão jovens, leves e flexíveis”, diz Carol, que registrou trabalhos de artistas da cena contemporânea carioca como Esther Weitzman, Regina Miranda, Giselda Fernandes e Denise Stutz.

PARA VISITAR

Exposição fotográfica
“Entrega”, de Marcos Alonso com colaboração de Felipe Santos
Até 30 de março, na São Paulo Escola de Dança
(Complexo Cultural Júlio Prestes - R. Mauá, 51, 3º andar – Luz – São Paulo
www.spescoladanca.org.br
 

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