Um dos principais concertos do compositor ganha interpretação nova e tem gravação de estreia revelada
Por Danilo Ávila
A interpretação de Aurora, concerto para piano composto por Almeida Prado em 1975, presente no último lançamento da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais com regência de Fábio Mechetti, é um acontecimento da maior importância. Permite ao espectador olhar a música contemporânea nacional em panorama. Lançada em maio, a gravação, disponível em CD, contém três concertos para piano do compositor e participa do projeto “Brasil em Concerto”, uma parceria entre o Itamaraty e o selo Naxos com a intenção de registrar um recorte do repertório nacional.
Dos três, todos interpretados com Sonia Rubinsky ao piano, Aurora é peça de maior relevância histórica. Metáfora solar de sons prismados, a obra foi composta para ser estreada com a Orquestra Sinfônica Nacional da Polônia, no Festival de Outono de Varsóvia em 1975, um dos principais festivais de música contemporânea do período. Devido a imprevistos, foi interpretada pela pianista Sônia Muniz e pelo próprio compositor em versão improvisada para piano à quatro mãos. Uma meia-estreia, mas com evidência internacional em festival prestigiado.
No ano seguinte, 1976, logo no início da temporada, o compositor faz às vezes do solista ao executar a Aurora na inauguração da Fundação de Teatros do Rio de Janeiro, instituição criada para centralizar a administração dos teatros cariocas. O programa do concerto realizado na Sala Cecília Meireles procura traçar uma linha evolutiva entre quatro compositores, com Almeida Prado ao final, cada um representando seu respectivo período: Lobo de Mesquita (cantata Tercis, barroco), Alberto Nepomuceno (Sinfonia em Sol Menor, romântico) e Villa-Lobos (Choros no. 10, moderno). O programa da apresentação pode ser visto aqui.
Com Eleazar de Carvalho à frente da Orquestra do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, esse é um concerto histórico, pois contém uma promessa de melhorias institucionais e uma continuação da nossa linhagem de compositores. Surpreendia uma abertura de temporada apenas com compositores brasileiros. Almeida Prado havia vencido o Festival da Guanabara em 1969 com a cantata Pequenos funerais cantantes e com a gorda premiação custeou seus cinco anos de estudos na França com a compositora Nadia Boulanger. Na sua volta, por volta de 1974, destacou-se com grandes encomendas (Livro sonoro, 1974; Cartas celestes nº 1, 1975) e começou a lecionar na Unicamp. Aurora, portanto, é estreada com orquestra em tom de consagração, para o compositor e para o meio musical.
A expectativa em torno do evento era tal que Eleazar de Carvalho divulgou o programa a ser executado na edição nº 147 do Brasil Hoje, noticiário televisivo da ditadura militar. De batuta em punho, acariciando-a como se a esmerasse, o maestro anuncia que “Villa-Lobos é um dos compositores mais conhecidos do Brasil e agora, com a música contemporânea [de Almeida Prado], o Brasil está ganhando terreno, levando a música jovem ao povo culto da Europa e dos Estados Unidos”.
Voltando à gravação, Sônia Rubinsky comentou na conversa de lançamento, no último 8 de maio, que a única coisa da qual sentiu falta no processo foi da presença do compositor, a possibilidade de esclarecer dúvidas. Por outro lado, confessou grande intimidade com a obra e o compositor. Ela e Mechetti interpretam Aurora juntos com a filarmônica mineira desde, pelo menos, 2013.
Realmente, seria impossível recobrar qual seria a opinião de Almeida Prado sobre os dilemas interpretativos que surgem ao longo da gravação. Mas, na semana anterior ao lançamento, o Instituto Piano Brasileiro divulgou, na sua série de digitalização das gravações do acervo do engenheiro sonoro Frank Acker, um registro do concerto de inauguração da FUNTERJ, mostrando na prática como o compositor interpretava o concerto.
Isto é, em duas semanas, o público que possuía apenas uma interpretação gravada informalmente em fita cassete dessa obra ombreada com os Choros nº 10 nos anos 1970, agora tem duas, uma delas com o compositor como intérprete.
E as auroras são diferentes.
Na peça, vemos no início o piano criar uma tensão entre as notas mi e fá na oitava mais grave do piano. A tensão entre as duas sonoridades é desenhada em um trinado tenebroso, alvorecer intrincado, algo interrompido, cujo movimento ascendente desemboca no rush pianístico e orquestral “intenso, solar, fulgurante” em fortíssimo, conforme indica a notação dos últimos compassos.
O piano é acompanhado por um quinteto de sopros solista chamado à frente da orquestra, os metais ficam ao fundo atrás do arco de cordas ladeado pela percussão. Para Sônia Rubinsky, esse é o “barulho do mundo”.
Nas duas gravações, esse barulho do mundo é representado de modo distinto. Na versão Mechetti/Rubinsky, ganha uma interpretação espiritual, com um início quase-letárgico de ascensão. Na orquestra e no solo, a tensão se desenvolve calma, concatenada, como se cada elemento novo pedisse licença para entrar.
Já na interpretação de Almeida Prado essa tensão inicial se desenvolve com brutalidade no piano, concorrendo com os metais dispostos ao fundo e o quinteto ao lado, dois grupos que tentam abafá-lo. O movimento espasmódico, aparentemente não-coordenado devido à enorme variação rítmica, é enfatizado e, aliado à agressividade das cordas e percussão conduzidas por Eleazar de Carvalho, anunciam uma percepção da natureza como catástrofe – imprevisível e caótica.
O contraste salta aos ouvidos quando comparamos os inícios e finais. Enquanto a nova gravação tenta domar a tensão, a interpretação do compositor a transfigura. Diante dessas concepções distintas de como representar o sonoro acontecimento solar, o ouvinte fica com gosto de ouvir ainda mais gravações, que façam um balanço dos dilemas e possibilidades que emergem dessa comparação.
Danilo Avila é doutorando em História (Unesp), onde desenvolve pesquisa sobre a música contemporânea brasileira. Este texto foi produzido durante o workshop Jornalismo cultural e a crítica de arte realizado pelo Sesc, sob orientação do professor e jornalista João Luiz Sampaio.
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