Morre, aos 92 anos, o compositor e maestro Clóvis Pereira

por Redação CONCERTO 04/06/2024

Músico foi um dos expoentes do movimento armorial impulsionado por Ariano Suassuna em Pernambuco nos anos 1970

O compositor e maestro Clóvis Pereira morreu na manhã desta terça-feira, dia 4, aos 92 anos. Ele estava internado em um hospital do Recife, onde, segundo a família, “descansou tranquilamente” no início da manhã. Pereira havia perdido a esposa, Risomar, em fevereiro, após quase 70 anos de casamento.

Clóvis Pereira foi nome importante da cena da composição brasileira na segunda metade do século XX, envolvendo-se com correntes importantes, como o Movimento Armorial, liderado pelo escritor Ariano Suassuna nos anos 1970. Trabalhou também como arranjador e músico de orquestra, tocando contrabaixo.

“Músico gabaritado, eternizado como sinônimo de frevo, Clóvis deixa uma extensa e destacada obra, sempre e para sempre celebrada em todo o mundo. Filho e pai de músicos, viveu entre muitos acordes. E seguirá imortal nos mais harmônicos e pernambucanos palcos e sonoridades”, afirmou em nota a prefeitura do Recife.

Clóvis Pereira nasceu em Caruaru no dia 14 de maio de 1932. Em uma entrevista publicada na revista Ictus, da Universidade Federal da Bahia, Pereira lembrou o início de sua trajetória musical. O pai, ele contou a Marília Paula dos Santos, não queria que ele tocasse instrumentos de sopro ou que entrasse para a banda onde, clarinetista, ele se apresentava. 

“Mas eu era louco por música. De repente deu uma vontade. Quando eu cheguei aos doze, treze anos, já no ginásio, aí eu disse: ‘Pai, eu quero aprender música’. Aí ele me trouxe um livro, me ensinou as primeiras lições. E eu fiquei cantando, solfejando, andava com o livro debaixo do braço. Ia para o ginásio... Estudei muito no ginásio. Fui um dos primeiros alunos, modéstia à parte. Mas quando chegou pelo terceiro ano ginasial, eu assisti a um filme sobre a vida de Chopin e outro sobre a vida de George Gershwin... Meu pai trabalhava no cinema, passava os filmes, e eu ia para lá assistir junto com ele, ajudar ele a projetar os filmes. Aí eu disse: ‘Não! Agora eu vou estudar música de todo jeito.’”

Pereira estudou no Conservatório de Pernambuco em Recife, para onde se mudou com 17 anos, e na Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Pernambuco. Foi aluno de César Guerra-Peixe, com quem estudou harmonia, composição e orquestração (mais tarde, em 1974, passou período nos EUA, estudando na Berklee College of Music). Em 1964, entrou para a Orquestra Sinfônica do Recife e começou a dar aulas nas universidades federais do Rio Grande do Norte e da Paraíba.

Na entrevista a Marília Paula dos Santos, Pereira contou como o trabalho como músico de orquestra o auxiliou na atuação como compositor. “Eu sou assim. Eu preciso de motivação. Preciso estar junto de uma orquestra, vendo a orquestra tocar. Ter contato com os músicos. Tendo contato com música. Mas eu abusei até da sinfônica. Toquei quarenta anos na sinfônica. No contrabaixo. Regi a sinfônica várias vezes. Compus pra sinfônica, umas duas ou três peças, e compus concertos. Eu fiz uma música em 67, 68, música sinfônica. Foi a primeira música que eu pedi ao maestro para escrever, quando eu entrei na sinfônica, para poder ouvir muito a orquestra de dentro, como era o naipe de cordas, como era o naipe de madeiras, o naipe de metais. E compus uma música assim, imaginando a orquestra. Fui fazendo”.

Nos anos 1970, ele teve o primeiro contato com Ariano Suassuna. Naquele momento, o escritor começava a desenvolver a ideia de uma arte brasileira e, segundo Pereira, entendia que a música, além do teatro e da literatura, poderia participar desse processo. Suassuna começou a trabalhar com o músico Jarbas Maciel, que lhe apresentou então Cussy de Almeida e Pereira. “Ele queria fazer música de câmara, que pudesse ensejar a composição de um concerto, de uma sonata. E o Jarbas indicou o professor Cussy de Almeida, que tocava muito bem o violino, formado na Europa, mas que também era nordestino, natural do Rio Grande do Norte. E disse: ‘Tem Clóvis Pereira, que estudou junto’. Fizemos uma reunião. Eu, Cussy, Jarbas e Ariano. Fizemos uma reunião e traçamos... Ariano traçou a diretrizes. E nós concordamos. Porque, como nós havíamos estudado com Guerra-Peixe... Guerra-Peixe tinha deixado o Rio de Janeiro para vir morar em Pernambuco, porque ficou encantado com o folclore. Ele veio para estudar o frevo, o caboclinho, o maracatu. Eu acho que essas foram as grandes fontes de Guerra-Peixe. Ele tem várias obras, não com o sentido armorial, mas com o sentido nordestino.”

Continua Pereira: “Quando nós começamos as reuniões, Ariano trazia os cantadores do interior. Trazia um rabequeiro, às vezes outro rabequeiro, um tocador de viola. E a gente ia ouvindo essa coisa bem natural. E a gente ia anotando e gravando e fazendo as pesquisas. Depois de uns oito a dez meses, Ariano pretendeu fazer uma audição. Essa audição reuniu dois tocadores de pife. E nós escrevemos peças, três ou quatro peças, eu, Jarbas e Cussy escrevemos de umas quatro a cinco peças. Pecinhas curtas, de três, quatro minutos, para mostrar o que seria essa nova música de câmara”.

A relação com o Movimento Armorial foi uma das principais marcas de sua trajetória, mas não a única, em especial porque havia, com Ariano Suassuna, uma divergência a respeito da utilização de instrumentos herdados da tradição europeia. Ao longo da carreira, Pereira escreveu obras para diferentes formações, com destaque para a Grande Missa nordestina, a Cantata de Natal, as Sete peças breves para piano, um quarteto de cordas, um concerto para violino (dedicado ao filho, o violinista Clovis Pereira Filho) e o Concertino para violoncelo e orquestra de cordas encomendado por Antonio Meneses. Foi do artista também a encomenda da Suíte Macambira, para violoncelo solo.

A vida e a obra de Clóvis Pereira foram abordadas na biografia No Reino da Pedra Verde, escrita pelo jornalista Carlos Eduardo Amaral e lançada pela Cepe Editora, incluindo um catálogo de sua produção.

Leia abaixo o depoimento que Carlos Eduardo Amaral escreveu para esta notícia a pedido da Revista CONCERTO:

“Fora de Pernambuco não se fala, muito possivelmente porque não se conhece, do primeiro círculo de alunos formado por César Guerra-Peixe.

Guerra-Peixe morou no Recife entre 1949 e 1952, para assumir o comando da Orquestra da Rádio Jornal do Commércio. Aqui, pôde rodar por subúrbios e cidades interioranas, e conhecer a vastidão das fontes musicais locais, o que determinou de vez o seu rompimento com o serialismo.

Ao mesmo tempo, quatro jovens músicos se aproximaram do Guerra para receber aulas de composição musical e, por tabela, foram influenciados a tomarem aquelas fontes como base para suas próprias composições: Capiba, Sivuca, Jarbas Maciel e Clóvis Pereira, o último dessa turma a partir para a Grande Orquestra Celestial.

O que se convencionou chamar de “música armorial” nasceu em 1970, mas algumas composições do Guerra, como o Ponteado n° 5 para violão solo e a Suíte para viola e piano, serviram como sementes para as primeiras composições escritas por Clóvis, Capiba e Jarbas para a Orquestra Armorial de Câmara de Pernambuco, sem mencionar as contribuições de Cussy de Almeida, Antonio José Madureira, Antonio Nóbrega, dentre outros.

Clóvis também foi o primeiro regente da Orquestra Armorial e veio a expandir o horizonte estético de suas peças, nas décadas seguintes. São dignas de nota a sua Grande Missa Nordestina (1978), para coro e orquestra, os concertinos para violino (2001) e violoncelo (2003), ambos com acompanhamento de cordas, e a fenomenal Suíte Macambira, para violoncelo solo, sendo estas duas últimas peças instigadas e gravadas por Antonio Meneses.

Há outra grande parcela de sua produção ainda por ser descoberta: peças para piano, ciclos de canções, cantatas, bem como obras atonais e acusmáticas compostas nos Estados Unidos, onde cursou o mestrado em Composição pela Universidade de Boston, de 1990 a 1992.

Candidato a uma cadeira na Academia Brasileira de Música no ano de 2006, praticamente desconhecido, concorreu com os já falecidos Henrique Autran Dourado, Gilberto Tinetti e Guilherme Bauer, que foi eleito para a cadeira de Belkiss Carneiro de Mendonça.

Clóvis, sobretudo, resta como referência reconhecida tanto na música de concerto como nos frevos, cuja sofisticação de escrita instrumental e harmonia é reverenciada por grandes especialista do gênero.”

[O velório de Clóvis Pereira será realizado dia 05/06, às 8h, na Capela do Cemitério de Santo Amaro.]

Clóvis Pereira [Reprodução/Facebook]
Clóvis Pereira [Reprodução/Facebook]

 

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