Na antiga produção do Anel do Nibelungo, de Wagner, no Metropolitan de Nova York, a mezzo soprano Christa Ludwig interpretava dois papeis. Em O Ouro do Reno e A valquíria, era Fricka; em O crepúsculo dos deuses, Waltraute. Fricka, a esposa de Wotan, relembra a ele seus erros, crimes, seu desrespeito à lei que deveria defender. Waltraute, por sua vez, volta à terra para implorar a Brünnhilde que salve os deuses de seu ocaso. São personagens muito diferentes. E, há alguns dias, fui surpreendido uma vez mais pelo modo como Ludwig as interpretava. É como se fossem duas cantoras diferentes, duas vozes distintas. O colorido, as inflexões. Como aquilo era possível?
A cena está fresca ainda na mente. E se une a outras da memória de ouvinte. As atuações em Strauss, Wagner, Beethoven; e no repertório de canções, Schubert, Brahms, Mahler: Ludwig é daquelas cantoras cuja técnica e personalidade ajudam a formar o ouvinte. “Poder ouvi-la era sempre um bom motivo para ir à ópera”, escreveu a soprano Birgit Nilsson em sua autobiografia.
Ludwig morreu ontem, aos 93 anos. Estava em sua casa em Klosterneuburg, na Áustria. Já não se apresentava desde 1994, quando passou a dar aulas e compartilhar a experiência que acumulou em cinquenta anos de carreira, ao longo da qual trabalhou ao lado dos principais artistas do século XX, em especial com três maestros fundamentais em sua trajetória, Karl Böhm, Leonard Bernstein e Herbert von Karajan.
Christa Ludwig nasceu em Berlim em março de 1928. Seu pai e sua mãe eram cantores líricos e com eles começou a estudar música, indo depois para a Musikhochschule de Frankfurt. Foi lá também que fez sua estreia, aos 18 anos, cantando Orlofsky em O morcego. Entrou para a companhia, onde ficou de 1946 até 1952; em seguida, integrou o elenco do Staatstheater Darmstad e, em 1955, passou a ser cantora da Ópera de Viena, um ano após fazer sua estreia no Festival de Salzburg como Cherubino.
A ópera, no entanto, não era a sua meta principal. Tinha profundo desprezo pelo repertório do bel canto italiano. Só o aceitava quando interpretado por Maria Callas: “Como não chorar ao ouvi-la cantar um recitativo de Bellini?”, contou em uma entrevista de 2017. Mesmo Verdi – de quem interpretou Lady Macbeth ou Eboli – não escapava de suas críticas. "Será que isso é mesmo arte?", perguntou certa vez em uma entrevista.
Não por acaso, foi no repertório alemão que deixou as principais marcas. Klitaemnestra em Elektra; Fricka no Anel; Brangäne, no Tristão e Isolda; Octavian e Marechala, no Cavaleiro da rosa; Ortrud, em Lohengrin; Leonore, no Fidelio. E Isolda e Brünnhilde, que interpretou apenas em concertos, testemunhos de uma voz de enorme alcance.
E havia o Lied. Schubert e Brahms eram particularmente especiais em sua voz. O pianista Gerald Moore, em Am I too Loud?, lembra uma sessão de gravação em que não concordava com as escolhas de andamento de Ludwig em determinada canção. Aquilo o incomodou até ouvir o disco finalizado. Foi quando entendeu as intenções da interpretação e como, considerando a opulência da voz, tudo ganhava novo sentido daquela maneira. E essa capacidade de encontrar, na música que interpretava, o espaço exato para sua voz é uma das qualidades que fez dela artista tão importante.
“Em um tempo como o nosso, em que personalidades são cuidadosamente construídas, temos grandes músicos a quem falta intuição, imaginação e uma relação de fato com os compositores que interpretam”, escreveu em sua autobiografia. “Coragem é necessária para revelar seus próprios sentimentos em uma interpretação, sem dizer à plateia, com o dedo em riste: ‘o compositor queria assim e não de outra maneira’. E para saber que, ainda assim, somos servos daqueles autores que nos deram essa música.”
No mundo das canções, Mahler talvez seja o compositor mais associado a ela, pela colaboração com o maestro Leonard Bernstein. Nos últimos tempos, voltou a circular pela internet um vídeo no qual os dois ensaiam Von der Schönheit, a quarta parte de A canção da terra.
Bernstein quer a passagem cada vez mais rápida, mas Ludwig reclama que daquela forma não conseguirá pronunciar as palavras. “A plateia não vai entender mesmo o que está sendo dito, qual o problema?”, responde Bernstein. É preciso intimidade para um diálogo como esse – ainda mais com uma cantora que fez do cuidado com o texto uma obsessão.
A própria Ludwig colocava Mahler em lugar especial em sua vida. Na mesma entrevista de 2017, disse que, ao morrer, gostaria que fosse tocada em seu funeral a canção Ich bin der Welt, do ciclo Rückertlieder. Precisaria ser uma de suas gravações, claro, mas ela ainda não sabia qual. Karajan, Klemperer, Bernstein: não há como errar.
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