#ÓperaHoje: Preconceito contra o novo está na curadoria e na formação, não no público

por Redação CONCERTO 15/10/2020

A tarde de quarta-feira de debates do webinar #ÓperaHoje, realizado pela Fundação Clóvis Salgado, começou com uma conversa sobre a composição de óperas na atualidade. Aos compositores Elodie Bouny, Leonardo Martinelli, Mario Ferráro e Marcos Balter foi pedido que falassem sobre diferentes aspectos do tema, do interesse de autores pelo gênero a questões estéticas e possibilidades de encenação.

Elodie Bouny, a quem o Theatro Municipal de São Paulo encomendou a ópera Homens de Papel, cuja estreia foi adiada pela pandemia, foi a primeira a falar. “A ópera gera sentimentos paradoxais. Para muitos é um espetáculo burguês, ultrapassado. Mas levanta sempre emoções intensas. Durante muito tempo, ela foi marginalizada, o serialismo revelou-se uma técnica que parecia não se adequar a ela. E isso levou a um desinteresse pelo gênero. Mas nos anos 1980, ele voltou a chamar atenção, com a volta de estreias ao redor do mundo”, disse.

Mas o que seria compor uma ópera hoje? “Uma questão que me parece importante é a dos temas, quer dizer, de que falam as óperas, e para quem elas falam. No século XIX, as óperas retratavam o mundo contemporâneo. Hoje em dia, mesmo com o renascimento do interesse pelo gênero, essa relação com o mundo de hoje me parece ainda inédita.” Ela também ressaltou o pouco espaço para a produção contemporânea. “O mundo das artes plásticas absorveu a produção contemporânea, mas na música e na ópera em particular isso não aconteceu. E, sobre a pergunta ‘para quem’, acredito que a ópera é hoje um gênero acessível para todos. No ano passado, a ópera Prism, de Ellen Reid, atraiu um público muito variado para o Theatro Municipal de São Paulo e o conquistou. Acredito que óperas novas assustam mais aos programadores do que ao público. Mas elas podem trazer olhares para a sociedade contemporânea e trabalhar para formar novos ouvintes.”

Leonardo Martinelli, autor de obras como Navalha na carne e O peru de Natal, colocou a ópera como um gênero desafiador em todo o mundo, dentro da busca de compreensão do que seria esse formato hoje. “Na contemporaneidade, a ópera foi vista como um gênero decadente. Pierre Boulez disse certa vez que a solução para a ópera era implodir os teatros de ópera. A resposta prática que ele deu a esse desafio foi não compor ópera, ainda que tenha regido várias peças. Stockhausen, em Licht, dá a sua resposta, faz uma recusa ao gênero. Enfim, existe no mundo todo essa questão geral de como entender a ópera.”

No Brasil, no entanto, ele enxerga questões específicas. “Há aqui uma sociologia particular a ser considerada. A gente não aprende ópera nas escolas de música e na universidade. Ela não está de forma sistemática na ementa dos cursos, quando aparece é rapidamente na aula de história da música ou de composição, onde só se fala na verdade do acorde de Tristão. Além disso, há um ambiente musical que é hostil à música moderna, que é o ambiente dos teatros de ópera no Brasil.”

Como Elodie, ele acredita que isso se deve à postura de gestores. “A ópera moderna, nova, é um vetor de atrair aquilo de que os teatros precisam: um novo público. Mas o novo incomoda os gestores. Não é só uma questão com a música, é uma mentalidade arraigada sobre o que é a ópera no Brasil e o que deve ser um teatro de ópera.”

Marcos Balter, brasileiro radicado nos Estados Unidos, onde é professor da Universidade da Califórnia, iniciou sua fala chamando atenção para o que define como “momento maravilhoso” para a ópera. “A ópera moderna, ousada, está tendo grande sucesso. No final de 2019, houve duas grandes estreias de sucesso: Orlando, de Olga Neuwirth, em Viena, e Heart Chamber, de Chaya Czernowin, chefe do departamento de música de Harvard, em Berlim. Qual foi o grande sucesso do Scala de Milão em 2018? Fim de partida, de Kurtag. Na última temporada do Metropolitan de Nova York, a única montagem a exigir récitas extras foi Akhnaten, de Philip Glass – e L’amour de loin, de Kaija Saariaho, foi um dos maiores sucessos dos últimos anos no teatro. Prism, de Ellen Reid, ganhou o Pulitzer e, neste ano, o prêmio foi para Anthony Davies pela ópera Central Park Five. Uma coisa é verdade: quando a ópera é ousada, quando vai com coragem, sendo apresentada sem obséquios, o público comparece, vai. Quem tem medo são os curadores.”

Para Balter, “está na hora da gente começar a pensar em ópera no Brasil com coragem estética”. “É preciso também ouvir compositoras e compositores negros e não brancos, a ópera brasileira tem que se parecer mais com o público para a qual ela é apresentada, abrir-se para discursos diferentes daqueles que a gente associou ao discurso operístico brasileiro. Uma das vantagens de ser um país novo é não ter que seguir uma linhagem como os europeus, que sentem essa necessidade nas costas. Precisamos de uma alforria na nossa juventude, que devemos aplicar em uma cara musical ousada e brasileira.”

Mario Ferráro, idealizador da Bienal Ópera Atual, relembrou que a ópera está sempre misturada com paixão – e que o gênero sempre foi palco de inovações. Quando os teatros de ópera se abrem, afirmou, o público entra. Para ele, há um caminho interessante no repertório de câmera. “Obras menores, e digo isso do ponto de vista econômico, tendem a acontecer mais vezes e em mais número. Com o dinheiro que se monta uma grande ópera, o que deve continuar acontecendo, claro, você pode produzir várias óperas de câmara.”

O mediador da mesa, Nelson Rubens Kunze, chamou atenção para o quadro otimista pintado pelos convidados. Mas colocou a eles questões práticas. Qual a solução para se criar uma dinâmica de produção de novas obras? Mais encomendas? Uma tentativa de pensar em teatros de óperas menos engessados?

“Não se trata apenas de encomendas. A gente foca muito nisso, mas é preciso pensar na criação de um terreno fértil, de um laboratório. Criar uma ópera é algo que demora, muitas vezes é um processo de quatro, cinco, seis anos. Akhnaten é de 1980 e foi, ao longo do tempo, se reestruturando, recalibrando. A encomenda é importante, mas além da remuneração é preciso dar ao compositor a estrutura que lhe permita experimentar. A montagem não pode ser um fim, trata-se de um processo”, colocou Balter. E Martinelli acrescentou, a partir de sua própria experiência: “O teatro de ópera tem uma metodologia fixa, baseada no trabalho com o repertório tradicional. E ela não se altera quando lidamos com uma ópera nova. E se algo de errado? E se algo precisar ser retrabalhado? O compositor não tem tempo de parar e poder repensar.”

Elodie também ressaltou a importância do laboratório, “o direito de errar e ir consertando”. “A gente sabe que muitas vezes a estreia de uma ópera é também sua última apresentação. Talvez isso possa ser contornado nos próprios termos da encomenda”, afirmou.

Debate do webinar #ÓperaHoje - mesa 2

A questão da formação voltou ao primeiro plano. Para Elodie, “os próprios cantores não são instigados a trabalhar esse repertório”. “Eles, que seriam nossos principais aliados nesse processo de criação, muitas vezes não estão convencidos da importância dele. É preciso refletir as instituições de ensino no Brasil”, colocou. “Além de bater nos gestores, esse ecossistema tem que passar também pela academia, pela formação. Você tem uma disciplina de um ano dedicada à Fuga, mas quando se questiona sobre por que não ter uma para a ópera, a resposta é que ela é ultrapassada”, concordou Martinelli. “A formação do intérprete é fundamental, não adianta formar só o compositor. Há de existir investimento no treino de cantores. Temos cantores especialistas na música barroca, no repertório do romantismo, mas persiste a ideia de que quem canta contemporâneo canta qualquer período”, disse Balter. 

Kunze colocou uma nova questão: será que olhar a questão musical para além da oposição entre vanguarda e conservadorismo, superar isso e aceitar maior diversidade estética, não levaria a uma maior presença da ópera? O preconceito estético não está ultrapassado?

“Graças aos céus evoluímos como seres humanos nas últimas décadas. Éramos mais preconceituosos quarenta anos atrás, com tudo e não só com a estética. Quando, com meus alunos, identifico algum resquício de preconceito, peço a eles que substituam, em suas falas, a música por raça ou religião. Se o resultado os escandaliza, então é hora de repensar o que dizem. Estilo não é causa, é consequência. Só pode nascer olhando para trás. Se o caminho é o contrário, ou seja, se nasce antes da música, então não é estilo, é agenda ideológica”, colocou Balter, seguido por Ferráro, para quem “a ópera é uma linguagem tão sui generis que não pode ter uma só linguagem específica”.

Ferráro voltou a defender a ópera de câmara como caminho a ser trilhado, sendo um laboratório, possibilitando a ocupação de novos espaços – inclusive as ruas – e permitindo maior ousadia. “Insisto que a saída é propiciar a criação de pequenas e muitas óperas. Isso também ajuda a mostrar aos compositores que a ópera é um gênero a ser trabalhado, que você não precisa abrir mão de sua linguagem, de sua estética, de sua voz. Acredito que é preciso repartir o bolo para depois fazê-lo crescer. Na nossa realidade, a grande casa de ópera não pode ser o espaço exclusivo para a ópera.”

Sobre essa questão, Martinelli fez uma ressalva. “A ópera sempre foi de câmara, até o século XIX. A ideia de aposta em obras de câmara é muito boa, mas não pode ser mais uma faceta da camerização da música contemporânea. Eu me preocupo com a postura de gestores que colocam uma pequena verba para a música de câmara como paliativo, enquanto continuam a trabalhar seus Verdis à la Zeffirelli. É dinheiro público. Instituições de ópera têm essa obrigação, existem não para agradar o diretor artístico ou um board de diretores. Elas têm compromisso antropológico com o público.”

Encerrando o debate, Balter afirmou que “o bonito da palavra ópera é como ela é aberta, significa obra”. “A gente faz com ela o que a gente quiser. Mas parem de pensar a história de forma fatalista. A história é de quem a conta. E essa é contada por um certo grupo de pessoas. Enquanto não mudarmos nossa relação com a história, a gente nunca vai se livrar dessas correntes e criar com liberdade. O movimento conservador atual talvez seja um convite para reexaminar essas pessoas que seguem no topo da contação da história. Na ópera, a música de câmara não pode ser a única opção, mas também precisamos parar de olhar para o teatro de ópera e para a orquestra sinfônica como o único lugar onde grandes obras podem ser apresentadas.”

Assista abaixo ao vídeo da mesa:

#ÓperaHoje dia 14/10/2020 

13'00" a 1h43'00 Mesa 2 – Compor ópera hoje
Mediação: Nelson Rubens Kunze. Convidados: Elodie Bouny (França), Leonardo Martinelli (SP),Mário Ferraro (RJ) e Marcos Balter (EUA)

2h00'00" a 2h20'00' – Apresentação de caso 2 – Pequeno teatro do mundo, com Fabiana Vasconcelos Barbosa

3h22'00" ao fim – Mesa 3 - Intercâmbio de montagens e trabalho em rede (PARTE 1)
Mediação: Flávia Furtado (AM). Convidados: Alejandra Martí (OLA), André Cardoso (RJ), Eliane Parreiras (MG), Evandro Matté (RS) e Tarcísio Santório (ES)

 

Apresentação de caso

Após a primeira mesa do dia, Fabiana Vasconcelos Barbosa fez uma apresentação sobre o Pequeno Teatro do Mundo, companhia independente que se dedica ao trabalho com óperas com marionetes. Atriz e educadora, ela fundou a companhia com Fabio Retti como um projeto itinerante – uma carroça-teatro leva um pequeno palco onde são apresentadas óperas. O primeiro espetáculo foi O menino e os sortilégios, de Ravel. “Entendemos que precisávamos encontrar um modo de produção sustentável. O público infantil é autorenovável e possibilita muitas formas de vender o espetáculo, em escolas, festas, teatro. Nas primeiras apresentações vimos como a ópera se comunicava com um público vastíssimo, que conversa com as crianças de todas as idades. Nossa missão era tirar a ópera do espaço formal e levar para outros públicos que ainda não conhecem a ópera. Com isso, cria um espaço de formação de plateia, mostrando às crianças uma música que não estão acostumadas a ouvir. E elas são o nosso foco.”

Confira a cobertura especial da Temporada de Óperas on-line da Fundação Clóvis Salgado.

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