Você não vai acreditar, mas ainda é possível fazer uma primeira gravação mundial de uma obra de Beethoven 250 anos depois de seu nascimento. A proeza é da pianista japonesa Mari Kodama, 53 anos, em seu recém-lançado CD “Kaleidoscope” (Pentatone). São 10 minutos de música de Beethoven nunca gravada. E o que é melhor: é uma transcrição que ele fez do Alegretto con variazioni, quarto movimento do maravilhoso Quinteto de clarinete em lá maior, K.581, de Wolfgang Amadeus Mozart.
É interessante, até porque Beethoven afasta-se da música original de Mozart, embora sua versão seja indisfarçavelmente mozartiana. Seria apenas mais uma bizarrice de uma pianista tentando ser diferente – e para isso escarafunchando raridades só para aparecer e ganhar espaço na mídia. Nada disso. É certo que Kodama tem padrinhos poderosos: de um lado, é protegida do grande pianista Alfred Brendel, hoje aposentado mas mentor de seletos músicos mundo afora; e é casada desde 1991 com Kent Nagano, de 68 anos, atual maestro titular da Orquestra Sinfônica de Montreal e também da Ópera Estatal da Bavária.
Bem, padrinhos são importantes, sabemos; mas quando não há talento real, nada acontece. Kodama é pianista talentosa e de carreira consolidada. Lançou no ano passado uma integral das 32 sonatas de Beethoven pelo selo Pentatone.
E, acreditem, as seis variações de Beethoven sobre o Allegretto do quinteto de Mozart são as peças menos interessantes deste álbum magnífico, que faz da dificílima arte da transcrição (ou seria transcriação?) o mote para uma sequência de extraordinárias descobertas.
Ferruccio Busoni, o grande pianista-compositor italiano tão escanteado hoje em dia, dizia que o ato da transcrição, arranjo ou o que valha é, na verdade, o mergulho mais profundo que um músico pode realizar na obra de outro. Isso significa, diz ele, comungar com o compositor o momento imediato que antecede o ato dele de escolher o meio sonoro para a ideia que tem na cabeça – é o momento mais puro da criação, quando ela ainda não tomou forma nem está presa a uma instrumentação. Busoni dizia que conseguia fazer isso com as obras de Bach que transcreveu. Eu concordo.
Isso significa ter muito amor pela obra de um terceiro. Era assim, como ato de amor, que Luciano Berio definia sua transcrição de Boccherini, por exemplo. E se você ouvir este álbum com atenção, vai perceber esta chama sagrada da paixão pela obra de Beethoven professada por compositores tão diferentes como o francês Camille Saint-Saëns e dois russos maravilhosos: o pouco lembrado Mily Balakirev e Modest Mussorgsky.
Voltemos a Kodama. Para um músico, diz ela, apenas ouvir, sem tocar uma música, “é como quando uma criança é proibida de tocar algo que gostaria de agarrar com as mãos; é algo que exige o tato”. Isso ocorre, diz ela, “porque tocar música sozinho e pensar em como tocá-la me leva muito mais fundo numa obra do que apenas ouvi-la ou estudar a partitura”. Kodama diz isso porque sempre amou de paixão os quartetos de Beethoven, mas nunca pôde tocá-los – um sonho que agora virou realidade.
Como, por outro lado, transferir o som homogêneo de um quarteto de cordas para o piano? “Vejo alguns paralelos entre arranjos/transcrições com o ato de se traduzir literatura”, diz a pianista. “A interpretação do tradutor é decisiva no processo. A tradução literal perde o sentido do original. Mas, como intérprete, também sou uma tradutora. Aqui, portanto, tenho de realizar uma dupla tradução: do original para a transcrição do original, e do quarteto de cordas para o piano.”
Como pianista, claro, ela não tenta imitar o som das cordas. Mas, para transportar a mágica destas partituras originais para quarteto de cordas para o universo do piano, diz Kodama, é preciso analisar no detalhe a obra original: “É o único meio de conseguir balancear a voz mais aguda, as intermediárias e o baixo em um único instrumento”. Talvez por essa dificuldade, Saint-Saëns, Balakirev e Mussorgsky tenham optado por movimentos intermediários, um lento e um scherzo. Jamais movimentos de abertura ou finais.
De certo modo, Saint-Saëns e Mussorgsky parecem ter optado por transcri(a)ções mesmo – ou seja, eles trazem a música de Beethoven para os seus universos característicos de criação. E aí a música fica mais interessante ainda. O francês transcreveu em 1869 dois movimentos contrastantes de quartetos iniciais ou intermediários: o contagiante “Allegretto vivace e sempre scherzando” do Rasumovsky nº 1, opus 59; e o “Adagio ma non troppo” do último dos quartetos opus 18. Já Mussorgsky foi direto para o opus 135: transcreveu o segundo (Vivace) e o terceiro (Lento assai, cantante e tranquillo) movimentos. Duas gemas idiomaticamernte pianísticas. No caso do russo, o gesto de Mari Kodama é ainda mais significativo: estas transcrições também são primeiras gravações mundiais.
Com tamanho brilho dos dois citados, Balakirev está alguns poucos degraus abaixo, mas nem por isso são menos interessantes suas versões pianísticas do Allegretto Maggiore: Thème russe, do Rasumovsky nº.2; e da Cavatina. Adagio molto espressivo do quarteto opus 130. Exagerei. O Allegretto é sensacional
Por tudo isso, este é, sem dúvida, um dos mais inteligentes tributos a Beethoven neste beethoveniano ano de 2020.
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