Álbum do grupo São Paulo Chamber Soloists espraia-se por praticamente duas horas de música, com execuções de primeira qualidade de obras ditas clássicas, seminais
Ao ouvir seu nome, há quem o ligue ao diretor musical da Rádio Nacional do Rio de Janeiro por mais de trinta anos, autor do antológico arranjo de Aquarela do Brasil, de Ary Barroso. Um arranjo que é, na feliz expressão do parceiro de Revista CONCERTO Irineu Franco Perpetuo, “cartão-postal musical da nação”. Ou então há os que o viram em ação num visionário trio de jazz, com Luís Americano e Luciano Perrone, entre os anos 1930 e 1940. Mas poucos lembrariam de como é de qualidade superior sua criação mais “adequada” para as salas de concerto, segundo os eruditos ortodoxos.
Radamés Gnattali nos deixou em 1988. Pena, porque vivo fosse ele soltaria uma risada ao ver como as coisas mudaram nestes quase quarenta anos que nos separam de sua partida. Hoje, seu Concerto carioca, vaiado em 1969 no Festival da Guanabara, é elogiado justamente pela postura inclusiva, que sempre foi a sua, independente de modismos (e olhem que ele viveu num tempo em que as vanguardas serialistas, de um lado, e o nacionalismo estreito, de outro, patrulhavam qualquer um que não rezasse por suas cartilhas).
Não chegou a desfrutar em seus 82 anos de vida o merecido prestígio por causa de uma visão tacanha e preconceituosa, sobretudo da tribo erudita. Só porque ele foi um dos maiores mestres da orquestração popular no país; só porque teimou em não ser um sujeito bem comportado, segundo as regras convencionais.
Pensei nisso tudo enquanto escutava com atenção o formidável Radamés, lançado pela Azul Music nas plataformas de streaming no último dia 7 pelo grupo São Paulo Chamber Soloists. Relembrei como saí perplexo e em estado de graça, depois de uma entrevista-conversa com Radamés na casa do pesquisador João Ferreti, em São Paulo, nos anos 1980. Perplexo porque até então não tinha ideia da genialidade e talento extraordinários de Radamés; contente porque saí de lá com a sensação de ter descoberto um compositor absolutamente completo.
Esqueça álbuns concebidos como playlists de retalhos musicais visando tão-somente chegar a milhões de “likes” digitais ou chamar a atenção de alguma playlist internacional e encher as burras. Criado por Alejandro Aldana, spalla da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, e Matthew Thorpe, concertino da Osesp, os São Paulo Chamber Soloists reúnem 14 dos melhores instrumentistas de cordas da cidade. E tem neste parrudo Radamés sua aula magna de como devemos gravar compositores brasileiros: não como recheios curtos espremidos entre obras conhecidas. Radamés espraia-se por praticamente duas horas de música. E tece um retrato de corpo inteiro do compositor. Lá estão, em execuções de primeira qualidade, obras ditas clássicas, seminais:
1) O Concerto para viola e orquestra de cordas, com a excelente Jennifer Stumm (aliás, responsável pelo Festival Ilumina, o evento mais inovador da cena musical brasileira dos últimos anos).
2) O Concerto nº 4 para violão e orquestra de cordas, que leva o apelido “A Brasileira”, com Fábio Zanon, talvez a obra mais inclusiva desta incrível noitada. Irretocável.
3) O Concerto para violino e orquestra de cordas, com Alejandro Aldana, músico notável.
Um capítulo à parte é o das criações de Radamés para cordas. Aqui estão, em interpretações de referência, o Concerto para orquestra de cordas; e a encantadora Suíte para orquestra de cordas, uma espécie de “sinfonia clássica” à Prokofiev, em que Radamés retroage, ainda mais, às formas da suíte barroca de danças.
Falei acima que o álbum concentra-se em obras magnas, e não em bombons. Há quatro exceções, mas desculpáveis diante da magnitude da empreitada. É uma antologia que Radamés chamou de Canções populares do Brasil. Lindas orquestrações para cordas de melodias do nosso inconsciente coletivo: a primeira junta Prenda minha, Casinha pequenina e Guriatã de coqueiro; a segunda junta Cadê a Margarida, Casa Branca da Serra e Rojão; a terceira une Na mão direita tem uma roseira, Cantiga de cego e Gondoleiro do amor; e a quarta retoma Cantiga de cego e segue com Sambalelê, Foi numa noite calmosa e Canto de trabalho.
São deliciosos bombons à la Villa-Lobos. Guloseimas assim, quero mais.
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