Não me parece exagero qualificar o concerto de Elina Garanca (pronuncia-se “garantcha”) na Sala São Paulo, na última segunda-feira, dia 24, de uma revelação. Obviamente, não a revelação da própria mezzo soprano letã, que, aos 42 anos de idade, tem seu nome consolidado no cenário internacional há uns bons quinze anos. Mas uma revelação – ou talvez redefinição, ou elevação – de um paradigma de excelência: quão bom um cantor lírico pode ser?
Não é à toa que, ainda antes do concerto, na segunda-feira, a Sala São Paulo lotada já estava fervilhante. Afinal, quem tinha assistido à primeira apresentação de Garanca, no sábado, trazia relatos deslumbrados, com os olhos cintilantes. Mesmo gente experimentada e viajada, que viu e ouviu de tudo nos melhores teatros do planeta, trazia na fala empolgação juvenil. Garanca, ao vivo, superava as elevadas expectativas de quem já a conhecia em gravação.
Ela surgiu no começo da década passada, interpretando, com agilidade e destreza, papéis mozartianos e do bel canto italiano. Com a idade e a experiência da maternidade, a voz encorpou: as coloraturas ficaram para trás, e veio a intensidade do verismo italiano.
Foi com o verismo que ela abriu sua apresentação, com uma versão antológica de Voi lo sapete, o mamma, da Cavalleria Rusticana, de Mascagni. Se você, como eu, morre de medo das mezzos “entubadas”, cuja voz se estreita conforme caminha para o grave, Garanca é a cura perfeita para os seus (nossos) traumas. Sua voz de peito é magnífica, no limite do inverossímil: a impressão, para o ouvinte, é de que apenas o colorido se altera, mas a ressonância é exatamente a mesma dos outros registros.
Logo em seguida, veio outro item verista: Io son l'umille ancella, da Adriana Lecouvreur, de Cilea. Não, você não leu errado, nem eu me equivoquei ao escrever: Garanca cantou, sim, uma ária de soprano – e na tonalidade original. “Não acredito muito nessa separação entre soprano e mezzo, nessas vozes que se deixam encerrar em caixas, que nos tiram a chance de nos desenvolver. Eu preciso de um dó natural agudo em duetos como o de Norma, em Amneris, etc. Sempre cantei e gravei algumas árias de soprano. Isso não significa que vou cantar o papel inteiro. Mantenho a flexibilidade da voz assim”, ela me disse, quando conversamos por telefone, no mês passado, e eu a questionei sobre essa escolha.
Como de hábito, em debates entre artistas e críticos, quem estava certa era a artista. Após reluzir na tessitura grave de Santuzza, Garanca exibiu o extremo agudo e luminoso de sua voz para lá de flexível como Adriana. Antes do intervalo, ela cantaria ainda uma ária de mezzo soprano da mesma ópera, Acerba Voluttà (o único momento em que os jovens músicos da Orquestra Acadêmica do Mozarteum Brasileiro, regida pelo norte-americano Constantine Orbelian, que já esteve por aqui algumas vezes com seu grupo, a Orquestra de Câmara de Moscou, ameaçaram encobrir a voz de Garanca, o que, felizmente, não ocorreu), bem como uma versão luxuriante de Mon coeur s’ouvre à ta voix, de Sansão e Dalila, de Saint-Saëns.
A cada ária, Garanca parecia encarnar imediatamente seu personagem – não apenas nas escolhas vocais, como na atuação cênica. Proferia os textos com clareza, sempre de forma idiomática; moveu-se no palco sem exageros (o que concedia mais peso a cada um dos econômicos gestos que decidia realizar), e teve ainda a atenção de, várias vezes, virar-se para o lado do coro, e cantar para a parte do público que estava fadada a vê-la e ouvi-la apenas de costas. O pódio do regente transformou-se em um item de cenário, e foi sentada ali que ela cantou boa parte de Les tringles des sistres tintaient, da Carmen, de Bizet.
Sua encarnação desse item icônico do repertório de mezzo tem sido louvada em prosa e verso, e não por acaso. Garanca não se rende aos estereótipos mais vulgares de “sensualidade” que vêm sendo a pior armadilha de tantas “Carmens” por aí, nem abarrota sua interpretação de maneirismos para que ela soe “pessoal”. Ela não precisa retorcer a boca, muito menos o fraseado da música de Bizet. Sua técnica aparentemente ilimitada informa escolhas inteligentes e amadurecidas; o refinamento aqui, não é inimigo, e sim o maior aliado da intensidade. Com isso, a escuta de um item tão batido como a Habanera ganha o frescor de uma primeira audição. Era como se toda a Sala São Paulo estivesse habitada por 1.500 Don Josés, apenas aguardando o momento em que ela lhes (nos) atiraria a flor fatal. Se o século XX teve muitas Carmens de antologia, Garanca parece firmar a primeira referência relevante deste papel no século XXI.
Como sabemos todos que lemos a excelente entrevista que João Luiz Sampaio fez com a cantora na matéria de capa da Revista CONCERTO deste mês, Garanca reside em solo espanhol, e essa afinidade esteve presente tanto nos dois itens de zarzuela que ela incluiu no programa, como nos quatro hispânicos que escolheu para o bis.
Entre eles, havia dois normalmente executados por vozes masculinas: Granada, de Agustín Lara, e No puede ser, de Sorozábal, que Plácido Domingo popularizou no célebre concerto dos Três Tenores, em 1990. Aqui ela parece ter feito uma continuação criativa de uma tradição do registro de mezzo – que historicamente embaralha ludicamente a identidade de gênero, incluindo papéis masculinos como Cherubino (As bodas de Fígaro, de Mozart), Octavian (O cavaleiro da rosa, de Richard Strauss) e tantos outros.
Após ouvir El día que me quieras, de Carlos Gardel, tratada com sutilezas de refinamento dignas de um lied, cheguei à conclusão de que, da cordilheira de talentos operísticos de primeiríssima linha que o Mozarteum tem tido a generosidade de trazer a nosso país nos últimos anos, Garanca talvez seja o pico mais elevado. Pois não nos impingiu a presença no palco de nenhum cônjuge de segunda linha, e tratou com bom gosto até mesmo o “kitsch” inevitável nesse tipo de espetáculo. Dá vontade de passar o resto do ano sem ouvir mais nada, para não macular a lembrança de uma noite inesquecível.
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