Paula Pires: fazendo história com Stockhausen, na casa do compositor

por João Marcos Coelho 25/04/2021

Clarinetista gravou em vídeo Harlekin, em performance promovida pela fundação que leva o nome do compositor

Conheci a clarinetista Paula Pires no segundo semestre de 2017. Pensei em programá-la na série de concertos de música contemporânea no Instituto CPFL, que coordenei por dezessete anos. Soube que ela era a única que poderia fazer a estreia brasileira de Harlekin, uma incrível peça-solo para o seu instrumento composta por Karlheinz Stockhausen (1928-2007).

Existem, de fato, duas versões desta peça que exige do músico não só a habilidade técnica de tocar, mas também realizar uma performance cênica com direito a figurino especial e cenário. Uma é a curta, de cerca de 11 minutos, que assisti anos atrás em concerto na Fundação Maria Luísa e Oscar Americano, sem figurino nem cenário. Mas a performance “au complet”, como dizem os franceses, com duração aproximada de cerca de 40 minutos, permaneceu inédita no Brasil até a apresentação de Paula no Instituto CPFL, em Campinas, no dia 19 de maio de 2018.

Harlekin foi composta em 1975 por Karlheinz Stockhausen. A execução seguiu à risca as detalhadas instruções do compositor: ele prescreve um figurino especial (que ele mesmo desenhou), minuciosas instruções para movimentações da intérprete pelo palco e iluminação específica.

Stockhausen transformou em um clarinetista o célebre personagem da commedia dell’arte, forma de teatro popular na Itália dos séculos XV e XVI. O misto de músico, ator, clown e dançarino desce das alturas numa grande espiral, na expressão do compositor em suas detalhadas instruções para o intérprete: primeiro ele encarna a figura do mensageiro de sonhos;  em seguida, atua como um brincalhão construtor de formas, criando uma melodia nota a nota; assume-se como um lírico enamorado, transformando tudo, até o que é feio, em beleza pura; melodia inteiramente construída, ele se transforma num pedante professor (quando erra, irrita-se muito); encarna a figura do dançarino apaixonado (aqui o intérprete dança ainda mais do que nos trechos anteriores); aos poucos, reduz a melodia ao mínimo, e de repente transforma-se num espírito que dança e toca em espiral: depois de entoar 12 vezes cantos de pássaros transforma-se num pássaro e sobe finalmente às alturas de onde veio. “A peça foi concebida e deve ser interpretada sem interrupção. Somente depois de tê-la escrito, eu descrevi as sete partes”, determinou Stockhausen.

Paula, nascida em Belo Horizonte, fez doutorado em Música pela Universidade de Évora e é Mestra em clarinete solo, com nota máxima, pela Universidade de Música e Dança de Colônia. Após o bacharelado na Unesp, com Serginho Burgani, foi bolsista de pós-graduação do DAAD (Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico) e premiada com a bolsa de aperfeiçoamento técnico e artístico da Funarte para estudos acerca de Karlheinz Stockhausen na fundação que leva o nome do compositor. Atualmente mora em Brasília e toca na Orquestra Sinfônica Nacional.

Digo tudo isso porque, feliz da vida, Paula me passou um e-mail na semana passada contando de “um feito especial para esses tempos pandêmicos”. Em 2020, já no reino do covid-19, ela foi convidada para fazer Harlekin na Fundação Stockhausen, em Kürten, Alemanha, no concerto em memória do compositor, que vem sendo anualmente realizado desde 2007 na data de sua morte, 5 de dezembro. “A viagem não aconteceu por motivos nada surpreendentes”, diz ela, “mas o concerto transformou-se numa produção de vídeo, lançada pela Stockhausen-Stiftung für Musik”.

 

Preste atenção nas palavras preciosas de Suzanne Stephens, a clarinetista que estreou mundialmente a peça 45 anos atrás e faz uma apresentação do concerto. Foi Suzanne, diga-se, que supervisionou anos atrás, lá na Fundação Stockhausen, a preparação de Paula. Agora ela retornou para o décimo quarto concerto memorial da Fundação, em grande estilo. Uma vitória pessoal e sobretudo artística da maior importância. 

Suzanne termina sua fala agradecendo a Paula, e lhe diz “God bless you”. É emocionante. Numa palavra, Paula, como se costuma dizer no futebol, fez história. Sua performance ficará marcada na história da Fundação do próprio Karlheinz Stockhausen. Parabéns, Paula. Fico curioso para saber: qual será seu próximo Himalaia a ser escalado em música?

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Paula Pires durante apresentação de 'Harlequin' [Reprodução/YouTube]
Paula Pires durante apresentação de 'Harlequin' [Reprodução/YouTube]

 

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