Franz Schreker coabita uma espécie de limbo de coadjuvantes na música da passagem da década final do século XIX e das primeiras três do século XX. Injustamente
Sempre adorei efemérides. Afinal, são um bom pretexto para falarmos a respeito e ouvirmos a obra de excelentes compositores, muitos hoje esquecidos. Assim como, aliás, relembrar também músicos extraordinários que a poeira do tempo trata de encobrir e nos fazer esquecer. Mas o fato é que este tipo de festinha cansa, depois da milionésima efeméride que vivi escrevendo sobre música. Afinal, a indústria – modesta, aceito, mas indústria – da vida musical clássica no planeta se alimenta mesmo de todo tipo de efemérides. Comemoram-se não apenas datas redondíssimas, como centenários, bicentenários, 50 anos – de nascimento ou morte. Virou moda comemorar cada década que nos distanciamos de grandes músicos ou compositores. Dez anos sem fulano, 135 de outro, etc.
Esta verdadeira e danosa síndrome nos faz deixar de praticar o sempre saudável espírito de garimpagem em torno do novo. E por novo entendo tudo que não conhecíamos e de repente nos chega aos ouvidos como uma maravilhosa descoberta. Pode ser um músico ou compositor do passado. Vou dar um exemplo matador. No máximo, vemos o nome do compositor austríaco Franz Schreker (1878-1934) associado em rodapés a um dos períodos mais brilhantes da música europeia da passagem da década final do século e das primeiras três do século XX. É o badalado “Apocalipse Glorioso” no qual brilharam estrelas como Anton Bruckner, Gustav Mahler, e também Arnold Schoenberg, Anton Webern e Alban Berg.
Ok, ouvimos muito mais os dois primeiros (maciçamente o segundo); e falamos bastante sobre os três restantes, embora ouçamos menos do que deveríamos sua música. Schreker coabita uma espécie de limbo de coadjuvantes – ilustres, mas sempre coadjuvantes, como Alexander Zemlinsky, que mesmo sendo cunhado de Schoenberg não tem sua obra executada nas salas de concertos como mereceria. Ao menos ele vem tendo suas peças gravadas com alguma frequência.
Mas o caso Schreker é escandaloso. Só senti isso quando ouvi um álbum duplo lançado este ano pela Deutsche Grammophon contendo suas peças sinfônicas e também canções com acompanhamento orquestral. Como a gente costuma andar demais no piloto automático, quando vi que a orquestra chama-se Orquestra de Concertos de Berlim, logo pensei em orquestra arregimentada. Mas conhecia o maestro Christoph Eschenbach. E embarquei numa viagem maravilhosa, para a qual convido todos os que me leem.
Mas vou recontar meu itinerário de descobertas tal como aconteceu. Pode encorajá-los na empreitada. Ouvi a primeira peça orquestral, Nachstücke, um noturno que o compositor retrabalhou a partir de sua ópera Der Ferne Klang, que quer dizer O som distante. A delicadeza de escrita, o cuidado na combinação dos timbres, as sonoridades ao mesmo tempo luxuriantes e com um travo amargo muito sutil compõem a paleta criativa de Schreker. Eschenbach e a orquestra impecáveis.
Parei de ouvir e saí em busca de respostas para o meu espanto. E li, por exemplo, o que escreveu um dos críticos musicais mais importantes do século XX, Hans Heinz Stuckenschmidt, nascido em 1901 e morto em 1988. Ele presenciou todo o movimento europeu, sobretudo no mundo germânico, de ruptura com o passado, e escreveu a seguinte frase, que dá o que pensar: “De todas as potências criadoras de antes de 1933, só conheço uma que foi impedida de ter uma chance de um renascimento: Franz Schreker”.
Triste destino musical, o dele. Sua carreira começou da melhor forma, com o triunfo de O som distante em 1912 e a nomeação como diretor do Conservatório de Berlim em 1920. Mas foi literalmente destruída pelos nazistas, que o perseguiram e proibiram sua música em todos os lugares. É surpreendente que, quase um século depois, Schreker ainda luta para recuperar seu lugar de direito, o de um grande compositor do início do século XX. Não com a mesma importância de um Gustav Mahler ou de um Richard Strauss. Mas não foi por acaso que os maiores maestros das primeiras décadas do século XX – como Otto Klemperer, Erich Kleiber e Bruno Walter – regeram suas obras e óperas, que competiam com as de Richard Strauss em popularidade.
Uma das obras que o fortaleceu como um dos grandes de seu tempo foi a Sinfonia de câmara, composta em 1916. Novo espanto meu, que estava descobrindo esta musica como se espanasse a poeira do tempo de um velho bolachão. Schreker obtém sonoridades diferenciadas, bem suas. E a razão é que ele usa triângulos, pratos, celesta, harmônio e piano, além das cordas, metais e madeiras. É como se a orquestra caminhasse como um único organismo gigantesco, fruindo de suas luxuriantes sonoridades.
Schreker, independentemente de efeméride, precisa ser ouvido nas salas de concerto. Não me lembro de ter assistido a algum concerto sinfônico com obras dele no Brasil. Outro espanto provocam suas canções. Ele compôs pouco neste gênero, mas as sete presentes no álbum, cinco delas de juventude, conservam o perfume inconfundível do apocalipse glorioso, à beira do abismo. Cinco são interpretadas pelo ótimo barítono Matthias Goerne. É verdade que aqui é determinante a influência de Hugo Wolf, um dos últimos mestres do lied. Schreker gostava tanto das canções de Wolf que orquestrou duas delas.
Mas as gemas mais preciosas são as duas canções sobre versos do ciclo Folhas de relva, de Walt Whitman, traduzidos para o alemão, compostas em 1926 para voz e piano. Só três anos depois, ele orquestrou o acompanhamento. Chamou-as de Duas canções líricas, que são interpretadas pela soprano Chen Reiss. Ao todo, mágicos 17 minutos, que recebem da cantora a sutileza e refinamento que versos e música exigem. Intitulam-se “Nada além de raízes e folhas” e “A relva? Uma criança diz: ‘O que é a relva?’”
Para mim, é o momento crucial deste belíssimo álbum duplo da Deutsche Grammophon. Então, sem preguiça, vá até uma plataforma de streaming e deixe-se levar pela música refinada infelizmente tão pouco ouvida de Franz Schreker.
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