Alguns, ou melhor, muitos anos atrás, a música clássica andou frequentando as telenovelas, numa fase em que o país inteiro grudava na telinha pra acompanhar toda noite os intermináveis enredos que demoravam quase um ano. Houve até uma delas intitulada ”Bravo”, de 1975/76, em que o papel principal era de um maestro, imaginem (no caso, o ator Carlos Alberto, que ensaiou com Júlio Medaglia para não fazer feio regendo).
O país vivia tempos duríssimos sob a ditadura militar. De certo modo, a novela coincidiu com o grande sucesso popular desfrutado pelo maestro Isaac Karabtchevsky, então maestro titular da OSB – Orquestra Sinfônica Brasileira. Numa entrevista de 2011 a Carlos Haag, ele relembrou que “havia, com a ditadura militar, um vazio do contato do jovem com a música e então nos ocorreu a ideia de fazer um movimento de cunho popular para recuperar o que havia sido marginalizado pelo regime: o acesso ao ensino humanístico”.
Qualquer semelhança com os dias atuais não é mera coincidência. Pois foi assim que nasceram os Concertos para a Juventude, os Concertos Internacionais (na TV Globo) e o Projeto Aquarius, que reunia multidões para concertos abertos na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro.
A OSB e Karabtchevsky foram muito malhados pelo mundinho erudito por se apresentarem com Chico Buarque no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Em troca, Isaac se transformou no protótipo do maestro erudito para públicos mais amplos. É preciso lembrar ainda que Júlio Medaglia também – e historicamente bem antes, em 1967, ao assinar o arranjo incônico de Tropicália, canção-estandarte do Tropicalismo, assinar excelente trilhas sonoras para telenovelas e minisséries globais. Júlio me contou, semanas atrás, que levou a OSB para a quadra da Mangueira, e fez questão de estimular o público presente a dançar quando a orquestra tocou música popular.
De certo modo, Medaglia e Karabtchevsky ultrapassaram os estreitos limites da música de concerto. Naqueles décadas, enquanto Medaglia e OSB confraternizavam com Cartola e outros bambas mangueirenses, Isaac avançou na fórmula testada com Chico Buarque e se apresentou com Tom Jobim, Cazuza e Caetano Veloso, entre outros.
Quanto às TVs abertas de hoje em dia, elas têm praticado diariamente a dancinha da garrafa – alguém lembra?, nasceu no Pelourinho, em São Salvador umas três décadas atrás, veja no YouTube – apostando entre si quem consegue chegar primeiro ao fundo do poço e encaçapar ao boca da garrafa, ou seja, o lixo sob todas as suas formas.
Em 2016, a novela global “A Lei do Amor” teve como música-tema de abertura e encerramento de cada capítulo durante meses a tocata das Bachianas 2, de Villa-Lobos, com uma letra maravilhosa de Ferreira Gullar – acrescida do luxo, ainda, de uma interpretação comovente de Ney Matogrosso.
Pois não é que agora o gesto se repete? Alguém do estafe global soprou em algum ouvido coroado que seria de bom tom, para mostrar que temos nível, colocar Beethoven nalguma trilha de novela. E a escalada é a recém-estreada novela “Quanto mais vida melhor”. A escolhida foi a Quinta sinfonia de Beethoven,. Se você pensou no tema do Destino que abre o Allegro con brio e frequenta dominante o movimento inteiro, acertou.
Não importa muito saber que a gravação escolhida é de uma tal Orquestra de São Petersburgo (informação do google, o que não quer dizer nada, mas pode indicar que talvez seja uma orquestra russa cachezista, arregimentada). O legal – e aqui traio minha idade, que fazer? –, o legal, eu dizia, é que a certa altura entra uma guitarra que põe fogo no tema do Destino. E quando você começa a curtir, entra a levada de pagode. Sem problemas, a ginga não é ruim. Mas, cá entre nós, nada a ver.
O mais chato nesta estória é que o público pensa que está consumindo a grande e nobre música clássica sinfônica. Será?
Sem saudosismo – um cacoete que detesto, me policio pra não cair nessa –, é impossível não lembrar das incríveis séries de televisão comandadas por Leonard Bernstein no horário nobre e transmitidas “coast to coast” dos anos 1950 hoje disponíveis no Youtube. Experimente o programa dedicado à... Quinta sinfonia:
Aliás, e para encerrar, os programas de Bernstein eram atraentes a ponto de provavelmente alcançarem boa audiência numa emissora hoje em dia. Vocês vão dizer que hoje há de tudo no YouTube e nas plataformas de streaming. Ok, me rendo. Tem muito lixo, mas também tem muita coisa excepcional. É só saber garimpar. Por isso mesmo, nossas orquestras sinfônicas deveriam começar a pensar em formatar programas para o meio digital, em vez de continuar teimando em tornar acessíveis concertos filmados, sem mudar uma vírgula do engessado ritual de um gênero que desde o século 19 não muda nadica-de-nada.
Mesmo capengas e adernando em relação ao streaming, as TVs abertas se sacodem e são capazes de dar exemplos interessantes. Para pensar.
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