A Revista CONCERTO já abordou algumas vezes o trabalho da Orquestra Criança Cidadã (OCC), desenvolvido no Recife, Pernambuco, desde 2006. Trata-se de um projeto de inclusão social por meio da música, gerido pela Associação Beneficente Criança Cidadã, criada em 2004 e que desenvolve também projetos na área esportiva.
Eu mesma, há alguns anos, já tive oportunidade de falar sobre o assunto e entrevistar seus realizadores, como o juiz João José Rocha Targino, um dos idealizadores do projeto ao lado do maestro Cussy de Almeida (1936-2010) e do desembargador Nildo Nery dos Santos (1934-2018). Mês passado, no entanto, pude conhecer pessoalmente o projeto, como parte do júri do II Concurso de Jovens Solistas da Orquestra Criança Cidadã, cuja última fase aconteceu nos dias 19 e 20 de novembro.
Destinado a intérpretes de violino, viola, violoncelo e contrabaixo de todo o país, com até 25 anos de idade, o concurso teve patrocínio do escritório Lima e Falcão Advogados e concedeu prêmios no valor total de R$ 11 mil. Estar lá foi duplamente proveitoso, uma vez que pude tanto conferir as atividades do projeto in loco quanto observar o nível dos estudantes de música da região.
O Criança Cidadã está sediado nas dependências de um batalhão do exército vizinho ao bairro do Coque, comunidade que à época do início das atividades possuía um dos maiores índices de violência e o mais baixo IDH do Recife. Atualmente o projeto atende a 360 jovens, com idade entre 07 e 21 anos, não só no Coque como também no município de Ipojuca e na zona rural de Igarassu. Muitos deles estavam presentes nos dias da minha visita, e dividiam-se entre atividades nas salas de aula e animadas conversas embaixo das árvores do batalhão, onde se protegiam do forte sol e calor.
Além de uma orquestra principal, os estudantes se organizam em mais de uma dezena de conjuntos de câmara e corais.
O maestro e diretor musical da OCC, Nilson Galvão Jr., foi quem me apresentou as dependências do projeto, com instalações simples, porém eficientes e funcionais. Os alunos permanecem no Criança Cidadã por um período diário de quatro horas, sempre no contra turno escolar (os mais velhos, que já cursam ensino superior, têm a obrigação de comparecer dois dias por semana). Recebem aulas de instrumentos, teoria musical, flauta doce e canto coral. Há ainda apoio pedagógico, atendimento psicológico, médico e odontológico, aulas de inclusão digital, fornecimento de uniforme e três refeições por dia. Além de uma orquestra principal, os estudantes se organizam em mais de uma dezena de conjuntos de câmara e corais.
O núcleo do Coque, que já possuía uma oficina de luteria, acaba de ganhar novas instalações e equipamentos. De um lado, a Escola de Formação de Luthier e Archetier oferece aos jovens a possibilidade de profissionalização na área. Mas, ao mesmo tempo, ela serve ao próprio projeto como espaço de manutenção e construção de instrumentos, já que estes são fornecidos às crianças, que podem levá-los para casa.
Na fase final do concurso foram ouvidos sete jovens músicos de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. Desses, havia dois alunos e três ex-alunos do próprio programa. O primeiro prêmio ficou com o violista pernambucano Raul Victor Martins, ex-aluno da Orquestra Criança Cidadã que atualmente cursa bacharelado em música na Paraíba. Os violoncelistas Fernando Trigueiro (também ex-aluno da OCC) e Haziel Cândido conquistaram respectivamente o segundo e terceiro lugares. Já a violoncelista Laís Oliveira e a violista Raquel Paz receberam menção honrosa por sua participação.
Há algum tempo constatamos, em São Paulo, que os projetos de inclusão social por meio da música – ainda que não tenham como objetivo primeiro formar músicos profissionais – têm levado o ensino musical a sério, dando boas oportunidades àqueles que desejam se profissionalizar na área. O mesmo pude observar no projeto Orquestra Criança Cidadã, cujo concurso revelou jovens de nível geral muito bom, a maioria com possibilidades reais de conseguir boa colocação profissional.
Nos difíceis tempos atuais, o projeto luta para sobreviver, sensibilizando autoridades locais e captando recursos via Lei de Incentivo à Cultura, tendo patrocínio da Caixa Econômica Federal e do governo federal. A Orquestra Criança Cidadã tem há alguns anos um terreno doado pelo governo federal, próximo ao batalhão do exército, para construir sua sede própria. Ao que tudo indica, o edifício (cujo projeto já está pronto) não deve sair do papel num futuro imediato. No entanto, a manutenção de suas atividades, o entusiasmo dos alunos e professores e a qualidade do trabalho feito diariamente já são motivos de sobra para se comemorar.
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