Por dever de ofício – dei um curso aqui na CONCERTO sobre música e utopia –, tenho lido bastante sobre o assunto. Confesso que tenho balançado feito um pêndulo. Ora acredito piamente e me entusiasmo com utopias. Convenço-me de que a música seguirá nos acompanhando como a única maneira de vislumbrar a eternidade por alguns instantes, como nos ensina o filósofo alemão Ernst Bloch (1885-1977). Instantes privilegiados porque se concretizam durante o tempo em que dura a execução de uma obra musical, instantes que se interligam entre a obra escrita no pentagrama, os músicos que a estão transformando em sons e o público que compartilha com eles.
Sim, estes momentos precisam ser preservados. Aí me descubro sonhando o mesmo sonho do Dr. Labirinto, cientista personagem do conto “A Máquina de Preservar”, do escritor norte-americano Philip Dick (1928-1982). Dick é leitura fundamental para quem gosta de ficção científica. Duas de suas histórias transformaram-se em blockbusters do cinema (Blade Runner e Minority Report).
Voltemos ao Dr. Labirinto. Preocupado com o colapso da civilização humana, ele concebe uma máquina para preservar a música no material genético dos animais. Direto ao ponto: uma máquina na qual você insere partituras de obras musicais em um lado e do outro sai uma criatura viva. Maneira incrível de preservar da destruição as obras musicais “tão frágeis” dos compositores do passado.
Uma universidade do meio-oeste norte-americano topa o desafio, constrói a máquina. Primeira experiência: o maravilhoso Quinteto de cordas K.516 de Mozart. Entra a partitura, do outro lado sai um pássaro com jeitão de pavão. Uma peça de Schubert transforma-se em ovelha. A de Beethoven num besouro. E a de Stravinsky vira um pássaro todo desconjuntado. Philip Dick, tarado pela prospecção do futuro, tinha um gosto conservador em música, não apreciava quase nada do século XX.
Passam-se alguns dias, e o cientista percebe horrorizado que os “novos” animais começam a se deformar, adquirem garras, dentes afiados, mecanismos de defesa contra um mundo hostil. A música, expressão de beleza, não sobrevive intacta na luta biológica pela sobrevivência. Desesperado, pega a fuga do primeiro prelúdio do Cravo bem temperado de Bach já deformada pela vivência no mundo exterior e a recoloca na máquina para ver que tipo de partitura sai. O resultado é uma catástrofe: uma cacofonia insuportável, informe e dissonante.
Será que as obras deformam-se a ponto de se descaracterizar completamente depois que saem da imaginação do compositor?
“O fato de suas criaturas musicais sobreviverem não poderia mais significar nada para ele, pois exatamente o que quis evitar quando as criou – a brutalização das coisas belas – estava acontecendo diante de seus próprios olhos”, escreve Philip Dick.
A ideia é muito rica, provoca muitas reflexões. Será que as obras deformam-se a ponto de se descaracterizar completamente depois que saem da imaginação do compositor, transformam-se em partitura e alcançam a sala de concertos onde são executadas e depois gravadas? Toda interpretação, é claro, já comporta boa dose de interferência do intérprete nas notas postas na pauta, meros sinais redutores e vagos. São apenas mapas de navegação.
O que nos leva ao passo seguinte: a obra musical não é – tão-somente – a partitura adormecida no pentagrama. Renasce cada vez que é tocada, cada vez que intérpretes estabelecem uma relação íntima com a obra, e por consequência com o compositor, reproduzindo o próprio ato da criação original diante de olhos e ouvidos da plateia. Ali, sim, está diante de nós a obra musical.
Falei que fico como um pêndulo no início deste texto. Verdade. Agora, por exemplo, já começo a pensar se bastam boas, ótimas execuções para fazer renascer as obras musicais num mundo tão hostil como o que enfrentou o Dr. Labirinto. Adianta viver numa bolha utópica cercado por um mundo distópico, à beira do abismo? Será que não vamos acabar nos deformando em contato com esta realidade tão adversa?
Tomara que ao menos esteja fazendo as perguntas certas. Já que as respostas, tenho consciência de que jamais as terei em caráter definitivo.
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