Diário de quarentena

por João Marcos Coelho 27/03/2020

Os músicos clássicos são hoje bem melhores do que os de trinta, quarenta anos atrás. Jeremy Reynolds, crítico do jornal Pittsburgh-Post Gazette, parte desta constatação, em artigo de 8 de fevereiro passado, no portal San Francisco Classical Voice.

E, para ratificar sua hipótese, ouve vários músicos e professores de escolas da região. Selecionei este artigo, mas não o li naquele momento, por causa da correria da vida musical intensa que ainda vivíamos no mês passado (como parece distante, diante do isolamento social a que somos submetidos atualmente). Bem, súbitas paradas forçadas ao menos nos levam a colocar em dia as leituras.

E este artigo me chamou a atenção porque por aqui vivemos fenômeno semelhante na década de 1990, quando o maestro John Neschling submeteu os músicos da antiga Osesp a provas de proficiência para continuarem no grupo. Vocês se lembram: os que não concordaram foram alijados do novo projeto Osesp e viraram a Sinfonia Cultura, ligada à Fundação Padre Anchieta. Discriminado, este grupo acabou realizando, sob liderança de Lutero Rodrigues, um importante mapeamento da música brasileira, sobretudo a do período pré-Villa-Lobos.

Mas é inegável que se elevou claramente o nível médio dos músicos brasileiros neste último meio século. Um tanto por causa da revolução da Osesp, outro tanto por causa da internet, que rompeu as comportas da informação em sentido absoluto. O acesso democrático às gravações, a livros, vídeos e áudios de aulas, palestras, de qualquer lugar do planeta, mudou tudo.

Pela primeira vez, maestros brasileiros como Fábio Mechetti, de sólida experiência internacional, conseguiram colocar em prática projetos formidáveis, como o da Filarmônica de Minas Gerais. Prova, aliás, de que não é preciso necessariamente ter um maestro estrangeiro à frente de uma orquestra para transformá-la automaticamente em grupo de primeiro mundo.

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Recomendo incondicionalmente a leitura do número 34 da revista serrote, do Instituto Moreira Salles, que acaba de sair – haveria um ciclo de debates sobre fascismo, racismo e intolerância religiosa. Mas, claro, os eventos foram cancelados em função do novo coronavírus.

A revista, porém, está em circulação e precisa ser lida. Para quem não conhece, é leitura urgente e fundamental para nos ajudar a entender o processo pelo qual passamos, politicamente, no Brasil. 

Ressalto principalmente o artigo de Jason Stanley, professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Yale que vem pesquisando de modo sistemático as formas de propaganda política. Escrito especialmente para a serrote, ele se intitula “A política do amigo e do inimigo”. O argumento é simples e direto: o contexto histórico é insuficiente para explicar o fascismo, que manipula democracias hoje em dia apoiado numa estrutura de conflito permanente. 

Isso lhe soa familiar? Então leia esta frase de Stanley: “O ideólogo fascista apresenta-se como o protetor de seus apoiadores contra um inimigo dotado de uma malevolência inimaginável”. Selecionei algumas colocações muito pertinentes para a nossa realidade: 

“Os movimentos fascistas proclamam defender a tradição – com frequência, a tradição religiosa, seja ela o cristianismo, o hinduísmo ou o judaísmo – de uma ameaça existencial contra o código moral da civilização”.

“Os inimigos são os liberais, os intelectuais, os comunistas, as feministas, os homossexuais, grupos étnicos desprezados ou minorias religiosas que supostamente cooperam entre si para destruir os valores religiosos tradicionais e patriarcais”.

“Este inimigo é retratado de forma monstruosa – como se estivesse engajado na tentativa de subverter as instituições e os meios de comunicação do país, numa espécie de conspiração que envolve os piores criminosos imagináveis”.

Jason Stanley [Divulgação]
Jason Stanley [Divulgação]

Puxa, é mesmo muito familiar à nossa realidade atual. Mas na sequência, Jason Stanley faz uma citação extensa de ninguém menos do que Goebbels, ministro da Propaganda nazista, de 1935, intitulado “O comunismo desmascarado”. E esmiúça seus termos e colocações, trazendo-os para a atualidade trumpiana. Cita um discurso de William Barr, procurador-geral do governo Trump. 

A semelhança é chocante: “Barr apresenta o governo Trump como a única esperança contra o crescente secularismo militante dedicado á destruição da ordem moral”. O espanto cresce ainda mais com um trecho de um discurso feito por Trump logo em seguida ao de Barr: “Trump apresenta seus oponentes como ‘radicais de extrema esquerda’ decididos a destruir o tecido moral da civilização. E se propõe como a única solução”.

Ficou com água na boca para saber como Stanley conclui? Vá á revista serrote nº 34, que não é imprescindível apenas por causa deste artigo, mas por suas 224 páginas e uma edição visualmente primorosa. 

E não deixe de ler ao menos outros dois ensaios imperdíveis: o de Nikole Hannah-Jones (“As raízes negras da liberdade”) e “Todo lado tem dois lados”, de Rodrigo Nunes, sobre a polarização enganosa, pântano no qual também – e infelizmente – chafurdamos hoje em dia.

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Comentários

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Pode-se criticar posições políticas, é razoavel, mas defender comunismo é realmente um ultraje. Um regime que assassinou milhões de indivíduos e que governa e sempre governou sob a "batuta" da tirania, vide a Venezuela, ser defendido nas entrelinhas é realmente uma incoerência para quem diz defender a liberdade. O regime comunista é tão nefasto quanto o nazismo, talvez até pior, porque se esconde atrás do "humanismo progressista". Não vou nem citar as consequências econômicas de tal regime. Atacar Trump e defender o comunismo é um paradoxo vergonhoso.

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