A força da arte que transforma

por João Marcos Coelho 16/10/2020

Está certo, sei que precisamos ter uma visão positiva das coisas, e cultivar sempre a esperança de que as coisas podem – e vão – melhorar. É, porém, quase impossível e insuportável permanecer passivo diante de uma realidade como a que vivemos nos últimos meses.

Não, não é sobre a vida musical, reduzida, como aliás toda a cultura, ao mundo digital, que quero falar hoje. É sobre o silêncio quase ensurdecedor – digo quase porque há pelo menos uma iniciativa, sobre a qual vou falar adiante – dos nossos artistas. Tenho tentado garimpar o que tem havido de reações artísticas ao descaso com a cultura. Afinal, somos todos cidadãos, e temos voz (ou não?).

Há tantos temas relevantes para a criação artística: as queimadas descontroladas na floresta Amazônia e no Pantanal, o desmonte de legislações que visavam justamente evitar este descalabro, etc.,etc. Isso além dos efeitos da pandemia. 

E olhem, a pescaria anda muito ruim. Nos últimos meses, só vi mesmo uma criação multimídia que mexe com nossos brios. 

Ela nos fala da pandemia. Mas de uma forma que soa como um imenso grito de revolta contra a transformação das vítimas da covid-19 em números frios. Elas são pessoas como nós.

A primeira faísca aconteceu com o poeta cearense Braulio Bessa, 35 anos, mais conhecido como “poeta rapadura” por suas frequentes aparições no programa matutino de Fátima Bernardes, na Rede Globo. A TV aberta não é mais hegemônica, mas ainda detém grande poder de comunicação e alcance. Bráulio emocionou-se ao ler a frase “Não há quem goste de ser número. Gente merece existir em prosa”. Isso estava escrito abaixo do nome de Dona Zumira de Souza no site Inumeráveis, um memorial dedicado à publicação dos nomes das vítimas do coronavírus no Estado do Ceará. Dona Zumira, que morreu aos 83 anos, é lá definida como “muito falante, adorava uma boa conversa. Uma avó carinhosa pra ser lembrada como poesia e lição”.

Pois, como eu ia dizendo, Braulio Bessa emocionou-se com a frase dizendo que as pessoas não gostam de ser um número. Criou então um mote no padrão do gênero de poema repentista “galope à beira-mar”: “Se números frios não tocam a gente, quem sabe nomes consigam tocar”. Galope à beira-mar é uma forma específica de poesia dos cordelistas do nordeste.

A sequência continuou virtuosa quando Chico César e o maestro Gil Jardim, diretor artístico e regente titular da Ocam, Orquestra de Câmara da ECA-USP, também se emocionaram com o poema de Bráulio. O primeiro compôs a canção Inumeráveis. E Jardim viu nos dois artistas o toque de gênio “transformando”, segundo suas palavras, “em mensagem sensível e empática a realidade tão dura desses nossos dias de pandemia”.

Emocionados todos, puseram mãos à obra. Nasceu assim um audiovisual de pouco menos de 10 minutos. Espetacular, emocionalmente impactante e excelente do ponto de vista artístico são três elogios que faço ainda – e também – emocionado com o resultado final desta aventura.

 

Além da canção de Chico César, Jardim escreveu um arranjo orquestral para a canção. Assim, uniram-se a Ocam e o Coral Comunicantus, igualmente da ECA-USP. 

Assistam Inumeráveis. Vocês vão notar que Gil Jardim faz duas citações, das Bachianas Brasileiras nº 1 e nº 4, de Villa-Lobos, logo na abertura. Elas levam a um “cenário de brasilidade sonora”, na feliz expressão do maestro, enquanto Anderson Penha, responsável pela produção dos vídeos da Ocam, projeta manchetes da imprensa sobre a pandemia. A certa altura, você vai reconhecer, Gil cita um trecho do célebre Allegretto da Sétima Sinfonia de Beethoven.

Conforme as regras do galope à beira-mar, o poema compõe-se de 6 estrofes com 10 versos de 11 sílabas. Na quinta estrofe, conta Jardim, ele aproveitou uma blue note que Chico César entoa em sua gravação original da canção e, na entrada do Coro, configurou um ambiente gospel, com comentários da viola caipira, a cargo do ótimo Neymar Dias. “Para mim, esse momento também significou uma forma de abraçarmos a luta racial desse momento no mundo”, revela este músico diferenciado.

É uma pequena obra-prima concebida por Gil Jardim e Chico César a partir do poema de Bráulio Bessa. São três as narrativas, esclarece Gil: as histórias sobre as vítimas da Covid 19 estão presentes no poema/canção de Bráulio e Chico. São as primeiras duas estrofes. Dezenas de fotos recebidas de parentes e amigos de vítimas da pandemia são projetadas durante a terceira e quarta estrofes; e nas últimas duas acontece a performance dos músicos executando e reafirmando a mensagem original através do arranjo musical.

Somente as vítimas da Covid-19 aparecem de corpo inteiro e colorido no vídeo. “Elas são os personagens protagonistas desse audiovisual”, diz o maestro. E conclui: “Por uma questão de respeito, todos os músicos aparecem em preto-e-branco, mostrando apenas as bocas ou as mãos dos instrumentistas, colocadas a serviço da mensagem ‘Se números frios não tocam a gente, quem sabe nomes consigam tocar’”.

Comecei este texto pessimista, e termino otimista. Porque criações como Inumeráveis demonstram que é possível fazer arte ao mesmo tempo engajada, tentando transformar a realidade dura, desigual e injusta que nos rodeia – e manter alto nível de criatividade.

Assista Inumeráveis. Não aceito desculpas.   

Leia mais
Colunistas
Adeus a Zuza Homem de Mello, por Irineu Franco Perpetuo
Colunistas Obras fundamentais, grandes intérpretes, por Camila Fresca
Colunistas A Filarmônica de Goiás acabou ou não acabou?, por João Luiz Sampaio
Colunistas Maria Callas em primeira pessoa, por Jorge Coli

Frame do vídeo da canção Inumeráveis [Reprodução]
Frame do vídeo da canção Inumeráveis [Reprodução]

 

Curtir

Comentários

Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.

É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.