Luigi Nono: um centenário que não poderia ter sido esquecido

por João Marcos Coelho 28/02/2024

É triste constatar que uma efeméride importante como o centenário de nascimento do compositor italiano Luigi Nono, em 29 de janeiro passado, não foi sequer citada em canto nenhum. Nenhuma obra sua, salvo engano meu, está programada para as temporadas de 2024.

E, no entanto, ele foi um dos compositores-chave do século XX, um dos criadores mais radicais e politicamente conscientes em seu tempo, que exerceu na plenitude todo o seu talento de criador artístico para lutar por seus ideais políticos. Nele conjugou-se “uma combinação única de composição de vanguarda com compromisso político”, na expressão de Carola Nielinger-Vakil em seu livro Luigi Nono: a composer in context (Cambridge, 2016).

Justamente por esta característica, a vida musical brasileira deveria recolocar sua obra em foco, porque ela nos ajuda a pensar melhor o ofício do compositor. Vivemos um momento em que a conjuntura planetária aproxima-se perigosamente de uma atmosfera muito parecida com a da Guerra Fria, que dominou corações e mentes entre 1947 e 1989, data da dissolução da União Soviética e da queda do muro de Berlim. Ou seja, o mundo no qual Nono viveu e atuou, política e musicalmente.

“A expressividade do seu idioma intransigentemente vanguardista é um comovente testemunho da sinceridade com que ele continuou a aproveitar a sua ‘chance revolucionária’ como uma oportunidade, também, para colocar problemas e resoluções completamente novos na música”, complementa Nielinger-Vakil.

É impossível compreender a música de Nono sem atentar para o contexto do antifascismo como coluna mestra das suas bases musicais e políticas

Postura que se reflete num punhado de obras-primas antifascistas, como Il canto sospeso (1956) e Ricorda cosa ti hanno fato en Auschwitz (1966), entre outras. Ou então numa gema absolutamente radical como Prometeo, tragédia dell’ascolto, obra na qual ele trabalhou durante a década de 1970. Nono remove a narrativa, e por isso ela não é uma ópera. Não há o que ver em Prometeo, apenas no som a performance encontra sentido: “uma tragédia da escuta”. Nesse sentido, é premonitório de nosso tempo perverso que banalizou a escuta. Mas esta é outra história.

A verdade é que é impossível compreender a música de Nono sem atentar para o contexto do antifascismo como coluna mestra das suas bases musicais e políticas.

Este não é o espaço para uma súmula exaustiva de sua vida e obra. Vale, no entanto, ressaltar algumas ligações surpreendentes de Nono com a América Latina e também com o Brasil.

Em 1967 e 1968, dois anos duríssimos por aqui, que terminaram com a edição do AI-5, Nono deu aulas no Centro Latinoamericano  de Altos Estudios Musicales, do Instituto  Torcuato di Tella, em Buenos Aires, àquela altura o centro de música de vanguarda mais importante do continente, onde vários compositores brasileiros estudaram (Marlos Nobre foi um deles). 

Poucos sabem que Nono veio também oficialmente como dirigente do Partido Comunista Italiano. Aliás, ao filiar-se foi corajoso ao “obrigar” o Partido Comunista a afrouxar o chamado realismo socialista e admitir a música de vanguarda em sua cartilha ideológica – ao contrário do que acontecia em todo o bloco soviético, insultando e reprimindo compositores como Shostakovich, entre tantos outros.

Numa conversa com Helmut Lück em 1972 (que está no volume Scritti scelti / 1948-1989 (Il Saggiatore, 2007), Nono diz que o PCI propugnou oficialmente pelo “realismo socialista”, mas os líderes do partido em Veneza lhe responderam que “se você acha que isso é importante para você [Nono exigira que o partido apoiasse a música de vanguarda], você tem que desenvolver sua luta desta maneira”. Ou seja, não lhe aplicou sanções por não praticar o realismo socialista.

Nono entrou para o Partido em 1952, junto com Bruno Maderna, e permaneceu membro vitalício até o fim da vida, em 1990. Foi eleito para o comitê central em 1975 e em muitas ocasiões serviu como ‘embaixador cultural’ do partido em suas viagens ao bloco oriental e à América Latina, anota Nielinger-Vakil. “Não abandou o partido precisamente porque viu a necessidade de debater e promover a mudança permanecendo nele. Segundo o compositor alemão Konrad Boehmer (1941-2014), ele nunca aprovou o stalinismo. preferiu aplaudir os mais severos críticos marxistas de Stálin, como Gramsci, Merleau-Ponty e Sartre."

Voltemos a 1948, para o curso de regência que o maestro Hermann Scherchen (1891-1966) comandou na Bienal de Veneza. Foi lá que a pianista e compositora brasileira Eunice Katunda (1915-1990) conheceu o ilustre e revolucionário radical Scherchen e jovens compositores italianos. Entre eles, Bruno Maderna e Luigi Nono. 

Um dos temas recorrentes no grupo de alunos de Scherchen (socialista desde a Alemanha de Weimar) era como conciliar o dodecafonismo com a estética do realismo socialista. Katunda, vanguardista de primeira hora no final da década de 1930 no Rio de Janeiro, no movimento Música Viva capitaneado por Koellreutter, tornou-se muito próxima de Nono a partir dos intensos debates entre eles a respeito desta questão. Eunice permaneceu por lá por pouco mais de um ano. São  daquele período cartas e textos emocionantes. Compartilho alguns trechos com vocês agora:

Uma Macunaíma na Europa: “Esta carta é mais uma carta para o Brasil, de Macunaíma que veio à Europa e se transformou mais uma vez. Imaginem que agora pela primeira vez me veio um desejo louco de escrever. Escrevo às vezes em italiano, às vezes em português, coisa que sinto profundamente e que exprimo com tanta naturalidade que se tornam verdadeiramente meus pensamentos (...) tenho a impressão de ser tese, antítese e síntese ao mesmo tempo... (...) Fiz em Veneza uma audição musical folclórica, apresentei cantos de trabalho, cantos de nostalgia, falei nas grandes imigrações do nordeste, nos rituais dos antigos cultos africanos, nas danças tradicionais do interior de São Paulo, nas grandes divisões das zonas folclóricas, falei nas qualidades e nos defeitos nossos com sinceridade. Falei do Brasil como brasileira, mas não como nacionalista.”

A virada estética radical de Eunice Katunda: “Cláudio Santoro, Guerra-Peixe e a autora destas linhas, abrindo os olhos a tempo, se afastaram decididamente da dodecafonia, por meio de renúncia pública e justificada. Imediatamente foram eles tachados de ‘adeptos do credo vermelho’, passando a ser apontados até em certas colunas da crítica musical da imprensa dita ‘sadia’, como propagandistas da ideologia soviética na música”.

Luigi Nono... Eunice Katunda...

Duas personalidades fortíssimas. O centenário de nascimento dela passou totalmente em branco no Brasil.

Ao que parece, o mesmo acontecerá com o de Nono. Infelizmente.

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Luigi Nono [Divulgação/Fondazione Archivio Luigi Nono/Grazia Lissi]
Luigi Nono [Divulgação/Fondazione Archivio Luigi Nono/Grazia Lissi]

 

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