Na semana passada, a encenação de Franco Zeffirelli para Turandot, de Puccini, voltou ao palco do Metropolitan Opera de Nova York. Com todo luxo e monumentalidade, ela nasceu em 1987 e segue como favorita do público da casa norte-americana.
Desta vez, porém, encontrou alguma resistência. No site Parterre, Gabrielle Ferrrari afirmou que Turandot é uma fantasia, um “fantasma do orientalismo do começo do século XX” e, a produção, “símbolo do capitalismo hedonista do final do século”.
Anthony Tomasini, do New York Times, não usou essas palavras, mas outras equivalentes. Turandot, com o retrato que faz da cultura chinesa, é uma ópera problemática. E a produção de Zeffirelli só reforça seu anacronismo.
O texto recebeu resposta de Heather Mac Donald, no City Journal. A produção de Zeffirelli é fiel às intenções de Puccini. Ninguém em perfeita saúde mental, ela afirma, se sentirá ameaçado pelo retrato que o compositor faz dos personagens. Mas o “narcisismo político de nosso tempo empurra toda produção artística para uma narrativa única de opressão”. A imaginação humana, assim, é “constrangida e esmagada”.
A pergunta em torno da qual os três autores circulam é a mesma: o que fazer com o repertório do passado que carrega questões sensíveis à nossa época, ainda que não o fossem no momento de suas estreias? A caracterização da figura feminina, o retrato de outras culturas, a opressão social. A lista não é pequena.
Encenar a cena final da Carmen, em que a cigana é morta por um Don José ciumento, é normalizar a violência contra a mulher? Sair cantarolando do primeiro ato de Madama Butterfly, elevado pela música de amor de Puccini, é regozijar-se perante a noite de amor entre um soldado americano e uma gueixa transformada em brinquedo sexual? (As duas perguntas foram feitas recentemente em um artigo do Times de Londres).
Nossa relação com a arte do passado – e nossa capacidade de inseri-la em nossos dias por um processo constante de reinterpretação – pode ser bem mais complexa e interessante do que isso. Fingir, no entanto, que essa discussão não existe... É curiosa, em um meio que enche a boca para falar de respeito ao passado e seus artistas, a recusa em estender a mesma cortesia ao nosso tempo e suas questões. Querendo ou não, esse debate está colocado. Participar ou não, é escolha pessoal. Reduzi-lo como infantil, como algo que deve ser calado em nome da arte, aí é só autoritarismo mesmo.
Mas dialogar não é algo que o mundo da ópera (e não as óperas em si, que fique claro) goste muito de fazer. E, nesse caso específico, mistura-se uma discussão a outra, confundindo-as em um mesmo balaio, sem disfarçar muito o desejo de que tudo fique como está. Uma coisa é discutir o olhar para o passado; outra é reconhecer a falta de diversidade do mundo lírico – e como é assustadora a pouca atenção dada a ela.
Mac Donald é autora de The Diversity Delusion, algo como A ilusão da diversidade, best-seller do New York Times. Nele, afirma que ideias tóxicas estão provocando uma crise na América, destruindo valores humanísticos com intolerância e opressão.
Para ela, a raiz do problema está no fato de que as discussões sobre racismo e desigualdade de gênero estão deixando de lado a meritocracia, que é substituída por um mundo no qual as relações humanas estão pautadas por raça e gênero.
Um mundo em que negros e mulheres eram alijados do debate político, cultural e social também não era um mundo pautado por raça e gênero? Então é difícil não ter a sensação de que o problema não é a pauta em si, mas para que lado ela pende.
Mac Donald tem ideias bem claras a respeito do mundo da música clássica. Lidar com questões como racismo tem feito instituições musicais abandonar o grande cânone da música ocidental; chamar atenção para o fato de que orquestras e teatros não são ambientes diversos é afastar a juventude dos clássicos e da ópera.
Claro, é mais fácil não chamar atenção para a falta de diversidade no universo da música clássica do que de alguma forma lidar com ela. E, no mais, sério: alguém acredita mesmo, para além de manchetes sensacionalistas, que nossa relação com a música de Bach, Mozart, Beethoven, Brahms, está em risco? E que precisamos criar mais uma redoma em torno das nossas salas de concerto para salvá-los?
Outra ideia de Mac Donald, defendida em um artigo publicado em julho, diz que “nenhum cantor é excluído de uma produção de ópera por conta de sua raça”. Asiáticos e negros têm cantado óperas de Mozart, Rossini, Berlioz, Bizet, Verdi, Puccini, Wagner e Offenbach nas maiores casas de ópera do mundo. Quanto aos negros, a discussão é irrelevante em um país como os Estados Unidos, ela diz, onde não existe racismo. Quanto aos asiáticos, o problema é que eles se dedicaram primeiro ao estudo de instrumentos de cordas no contato com a música ocidental. E o canto ficou para depois.
Algo grande está em jogo, ela continua. Porque daqui a pouco cantores brancos não poderão mais cantar em grandes teatros. Serão impedidos, em favor do politicamente correto. Não terão oportunidades. Serão deixados de lado por conta do preconceito racial. De novo: em um mundo em que negros não cantavam em grandes casas de ópera, não era também o preconceito racial que os prejudicava? Então, o problema não é o preconceito em si, mas em que direção ele é atirado.
Precisamos de um dia da consciência branca, para lutar contra o racismo direcionado aos brancos; e de um dia do heterossexual, afinal daqui a pouco todo mundo vai ser obrigado a ser gay. Todos nós já ouvimos comentários assim e Mac Donald não está muito distante deles. Poderíamos até ignorá-la como um arremedo conservador, mas o problema é que as suas são noções bastante difundidas no meio musical – e nem sempre por reacionários irascíveis. E que ideias como meritocracia continuam a ser propagadas com orgulho e sem nuances, mesmo em um país tão desigual quanto o Brasil, em que o conceito de inequidade parece difícil de compreender.
O fato de não existir nenhum estudo minucioso sobre a presença de artistas negros nas orquestras e teatros de ópera no Brasil é revelador da importância que o tema tem por aqui. Nos Estados Unidos, números existem. Em 2014, segundo a Liga das Orquestras Americanas, menos de 2% dos músicos de orquestras e apenas 4,3% dos regentes em atividade no país eram negros. Uma pesquisa feita pelo site The Middleclass Artist mostrou que apenas 3% dos cantores regulares na história do Metropolitan, entre 1883 e 2019, eram negros – e que o número de récitas por eles cantadas era menor, em média – 315 para cantores brancos, 200 para cantores negros.
Professora do King’s College, em Londres, Cristina Scharff mostrou, na edição de setembro passado da revista On Curating, o impacto da inequidade na música clássica britânica. Seu diagnóstico é claro. “Mulheres e músicos negros ou de minorias étnicas, assim como artistas que vêm de famílias das chamadas working class, enfrentam diversos desafios, potencialmente interligados, que vão da falta de representatividade, da segregação vertical e horizontal, da desigualdade no pagamento, até a construção, impregnada de questões de gênero e raça, do que seria um músico ideal”. Seu texto e toda a edição da revista, dedicada ao tema, pode ser lido aqui.
A pesquisa Equality & Diversity in Concert Halls, realizada pela Fundação Donne, por sua vez, mostrou que, das 14.747 obras musicais programadas por cem orquestras de todo o mundo em suas temporadas 2020 e 2021, apenas 747 (5%) foram escritas por mulheres. Dessas peças, apenas 1,11% foram escritas por mulheres negras ou asiáticas (entre os homens, a diversidade também é pequena: apenas 2,43% das composições foram criadas por negros e asiáticos). Há cerca de um mês, a pesquisa AmplifyHer: Voicing the experience of women musicians in Brazil, feita por pesquisadores da Manchester Metropolitan University, da Universidade de São Paulo e da Edinburgh Napier University, também trouxe dados importantes sobre a presença feminina no meio musical – erudito e popular.
O racismo ou o preconceito de gênero não nasceram no mundo da música, é evidente. Mas a atividade musical se insere em uma sociedade na qual eles ainda existem. Se há exageros nos extremos, isso vale para os dois lados, tanto para quem sugere banir uma ópera do repertório como para quem acredita que olhar criticamente para o passado significa abrir mão de um patrimônio artístico. Da mesma forma que falar em inclusão de um grupo não significa acreditar na exclusão de outro. A proposta, afinal, é somar. Não mais dividir.
Há muitos sentidos na atividade artística, mas manter o status quo não deveria ser um deles. Ainda mais no momento pelo qual passamos, em que a arte – e a música clássica, em especial – é usada em discursos sobre uma pretensa guerra cultural a opor o bem contra o mal. A rima é pobre, mas a ideia também é. Discutir esses temas não afasta ninguém da música clássica ou da ópera. Já calar perante eles...
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Comentários
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Eu não sei se aplaudo este…
Eu não sei se aplaudo este texto ou se choro pelos comentários nos artigos da Heather Mac Donald.