O quarteto Emerson anunciou na semana passada que está encerrando sua trajetória brilhante de 45 anos, cerca de uma centena de gravações e inúmeras turnês pelos quatro cantos do planeta. Só que isso acontecerá de fato apenas em 2023. No mundo clássico, as despedidas são assim mesmo. Com muita antecedência. Como aliás tudo na vida musical clássica.
Nelson Freire me confidenciou certa vez que lhe desagrada ter de fixar com enorme antecedência sobretudo o repertório de seus recitais. Ao menos uma vez – no malfadado recital de inauguração do Auditório Ibirapuera – ele começou a tocar uma peça (não me lembro agora qual) e de repente parou, após alguns compassos. Recomeçou com outra.
Músicos são de carne e osso. E deveriam ter o direito de modificar um programa se ou quando não estão no clima para tocar esta ou aquela obra. Só que não. Apenas os grandes como Nelson podem se dar a esta extravagância.
Está certo. Agora que a pandemia parece – ao menos acima do equador – dar uma trégua, tudo indica que eles farão muitos concertos “de despedida”.
Assisti ao menos duas vezes o quarteto na Sala São Paulo. Em ambas, a qualidade de execução, a integração entre eles e as interpretações às vezes privilegiando andamentos rápidos demais me impressionaram muito. Em 2014, eles já estavam com um novo violoncelista, Paul Watkins, no lugar de David Finckel – a única grande mudança em 42 anos de existência, já que Finckel começou em 1979.
Quartetos necessitam de no mínimo dez anos para começar a adquirir um DNA próprio. É preciso ter muita determinação e afinidade com os parceiros para construir literalmente uma personalidade artística diferenciada.
Uma história absurda, mas infelizmente real. Um aloprado secretário municipal de cultura, décadas atrás, decidiu demitir os integrantes do Quarteto Cidade de São Paulo, corpo estável do Theatro Municipal por obra e graça do iluminado Mário de Andrade. Motivo: teriam se apresentado para terceiros mediante cachê. O dito secretário não tinha a menor ideia de que seriam necessários uns dez anos para termos de novo execuções ao menos razoáveis. É isso que dá relegar a cultura ao último degrau de importância no serviço público. Muita gente pensa que só agora a cultura é considerada lixo pelos responsáveis oficiais de plantão. Consolem-se. Sempre foi assim. Qualquer dia cito mais alguns exemplos vexatórios.
Mas voltemos ao Emerson, meu assunto de hoje. Há várias narrativas explorando as ambiguidades entre os integrantes de um quarteto. A inveja que normalmente o segundo violino tem do primeiro é uma delas. Talvez por isso, os Emerson sempre adotaram um salutar rodízio entre Eugene Drucker e Philip Setzer. Foi assim em 2014 na Sala São Paulo: Setzer foi primeiro no quarteto de Haydn e no de Britten; e Drucker, em Schubert. Não esquecerei as performances admiráveis no quarteto “Morte e a donzela” de Schubert, e no terceiro quarteto de Britten.
Três anos depois, em 2017, na mesma sala, eles me impactaram com a melhor interpretação ao vivo do terceiro quarteto de Bartók. E, coincidência, também no terceiro quarteto de Robert Schumann.
Digo coincidência porque sua mais recente gravação, realizada em 2020 e lançada no início deste ano, marca a estreia do grupo no selo Pentatone. E traz justamente os três quartetos que Schumann compôs em 1842, depois de tocar com sua amada Clara versões de todos os quartetos de Haydn, Mozart e Beethoven cronologicamente. Foi seu “curso de pós-graduação” no gênero – só depois atreveu-se a compor os seus.
Como outros grandes quartetos, eles construíram um acervo extraordinário. Vou sentir falta deles em concertos. Aliás, já estou sentindo muita falta, há bom tempo, dos concertos ao vivo.
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