O avô e o tio da sofrência

por João Marcos Coelho 27/03/2023

“Avô da sofrência”. Foi assim que recentemente qualificaram a música de Beethoven em rara matéria sobre música clássica num dos telejornais da Globo. A pauta nasceu, claro, a partir de um fato bizarro: um novo estudo sobre os cabelos de Beethoven. Os anos passam – muitos anos, aliás, desde que comecei a escrever sobre música – e a música clássica, ou dita de invenção, ou erudita (deem o nome que quiserem) continua a ser maltratada.

Nestes casos, o raciocínio costuma ser o seguinte: tudo bem chamar Beethoven de “avô da sofrência”, foi um jeito de falar de “boa música”. Mas não dá pra  alguém conhecer Beethoven a partir de idiotices deste tipo. Idiotices, alias, que perseguem vários compositores extremamente populares, como é o caso do efemerizado da vez, Sergei Rachmaninov.

Não seria impossível, em alguma matéria nos cambaleantes canais de televisão aberta nas próximas semanas a propósito dos 150 anos de nascimento de Rachmaninov chamando-o de “tio da sofrência’.

Brincadeiras maldosas à parte, o fato é que Rachmaninov é um dos compositores mais maltratados pela Academia e pela crítica musical ao longo do último século. A distorção mais frequente é tratá-lo como mero “pianista compositor”. Mas como?, se ele dirigiu o Bolshoi por quatro anos e compôs três óperas? 

Ele só assumiu a “persona” do pianista já fora da URSS. Precisava ganhar a vida. E como pianista, tenho certeza, deve ter se divertido muito. Rachmaninov pertencia à linhagem dos virtuoses do século XIX. Música significava prazer. Muitos “exegetas” atuais espantam-se e o desqualificam ao saberem que como pianista, ele fazia todo tipo de concessões: paráfrases, variações, transcrições... tudo que pudesse agradar ao público. Costumava tocar somente 24 das 32 variações de Beethoven em dó menor porque cansavam o público. Fazia isso até com suas próprias obras. As imponentes, magníficas, Variações sobre um tema de Corelli, por exemplo: “Num recital numa pequena cidade norte-americana”, confessou, “a plateia tossia tanto que eu só toquei dez das vinte variações Corelli. Neste sentido, atingi meu recorde quando consegui tocar 18 das 20 variações num recital em Nova York”.

Um dos atributos dos grandes pianistas virtuoses do século XIX, de Liszt em diante, até Rachmaninov, que sempre me atraíram muito é esta alegria de fazer música por prazer. Já imaginou um pianista atual eliminando uma ou outra das variações de obras de Beethoven ou do próprio Rachmaninov porque sente o público entediado? Seria massacrado pelos “entendidos”, claro; mas só pelos “entendidos”.

Que tal espanar nossos preconceitos e ouvir um pouco este pianista de mãos espantosamente grandes, que alcançavam um intervalo de décima terceira? Sergei viveu o início da era do disco. Foi contratado exclusivo da Victor, que depois viraria RCA Victor, entre 1919 e 1943. Existem cerca de 10 horas de música gravada por ele – o que é muito quando se sabe que elas foram originalmente lançadas em  discos 78 rotações, com no máximo 4 minutos de cada lado.

Há algumas gravações importantes, como a do primeiro e terceiro concertos com Eugene Ormandy e a Orquestra de Filadélfia (1939); os prelúdios, os études-tableaux em março de 1940; e, em fevereiro de 1942, as derradeiras gravações: a partita de Bach, a oitava “Novelette” de Schumann e “Lullaby” de Tchaikovski.

Vamos ser francos. O mundo musical não é capaz de aceitar que um artista seja igualmente genial regendo, tocando piano e compondo. O compositor inglês de origem persa Kaihosru Sorabji (1892-1988), amigo pessoal de Rachmaninov, tem uma boa explicação para isso: “Um clichê muito em voga, sobretudo na Inglaterra e nos Estados Unidos, decreta que um indivíduo não pode ser um grande intérprete e um grande criador. Quando ele é magnífico em ambos os setores, como Liszt ou Busoni, então é preciso acentuar o preconceito a qualquer preço. Assistimos, assim, a campanhas sistemáticas de desqualificação, onde a obra é classificada como ‘música virtuose’, ‘música de pianista’, e assim por diante, sem nenhuma preocupação com a honestidade ou equidade”.

Termino estas digressões em torno de Beethoven, Rachmaninov e a sofrência sugerindo a você, jovem músico talentoso que se divide entre a composição e o talento como instrumentista, que siga o conselho dado pelo dramaturgo irlandês George Bernard Shaw (1856-1950), que também atuou por mais de meio século como um dos mais importantes críticos musicais da Inglaterra, ao pianista-compositor Ferruccio Busoni (1864-1920), conhecido como um dos maiores pianistas de seu tempo: que assinasse suas composições com um pseudônimo – única maneira de vê-las julgadas com isenção.

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Sergei Rachmaninov [Reprodução/Carnegie Hall]
Sergei Rachmaninov [Reprodução/Carnegie Hall]

 

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