Clássicos são obras que permanecem ao longo do tempo. Por isso a música de concerto também é chamada de clássica. Porque se concentra na música capaz de vencer o tempo, capaz de continuar assumindo a cada geração novos significados.
Toda vez que baixa meu tônus vital com tudo de negativo que nos rodeia neste insólito biênio 2020/21, socorro-me com um livrinho-bomba, um manifesto virulento e cheio de indignação intelectual a favor da arte e da cultura desinteressada, composto de um ensaio inicial e, em seguida, de um desfile em defesa do inútil a cargo dos maiores craques entre os clássicos, de Platão e Aristóteles a Ovídio, Dante, Montaigne, Borges, Shakespeare, Boccaccio, Leopardi e Calvino. Entrevistei anos atrás o professor calabrês Nuccio Ordine, autor desta verdadeira cruzada que leva o título A utilidade do inútil.
Lembrei-me dele também ao iniciar a leitura de outro livro sensacional, que acaba de ser lançado pelas Edições SESC: Notas para uma definição do leitor ideal, de outro mestre nesta cruzada, o argentino Alberto Manguel. Como Ordine, Manguel é daqueles iluminados que nos fazem abrir e nos encantar com as páginas de clássicos como o romano Sêneca ou mesmo Platão, para ficar só em dois nomes ilustres que em geral a moderna educação engessada, quando não os omite no ensino, transforma-os em monstros de leitura difícil, apavorando quem deles se aproxime.
Mas atenção, esta não é uma resenha do livro de Manguel. Fiquei deslumbrado já com o primeiro artigo, de dez páginas, e a partir desta degustação inicial já me proponho a atiçar a curiosidade de vocês para que saboreiem avidamente este livro incrível.
“A democracia como obra de ficção”, este é o título que abre a coletânea de textos de Manguel. Ele começa fazendo a mesma pergunta de Nuccio Ordine: por que ler os clássicos? “Por que ler Sêneca, por exemplo? Entre outras coisas”, diz Manguel, “para nos consolarmos com o que os alemães chamam schadenfreude, essa espécie de enviesada alegria de descobrir que os outros, nossos antepassados, também não foram felizes e que, nas épocas remotas da cultura clássica, a vida não era mais fácil nem justa”.
Um consolo meio amargo. Manguel se aproveita da nossa concordância com o argumento para remexer em nossas feridas atuais: “Comparados com os lunáticos césares, nossos atuais governantes chegam a parecer quase racionais, perto dos sangrentos espetáculos que o povo exigia, os mais violentos videogames são brincadeirinhas inocentes; diante das enormes injustiças da sociedade romana, as nossas ditaduras, com todos os seus desmandos, parecem até democráticas”. Aí permito-me discordar e mesmo assim dar um voto de confiança a Manguel porque ele escreveu isso antes do binênio 2020/21 e das centenas de milhares de mortes em países como o nosso, causadas pela total incúria e descaso oficiais com o combate à covid-19.
Algumas linhas abaixo ele se redime ao lembrar que Calígula, “um dos césares mais dementes e sanguinários, morreu assassinado em janeiro de 41, ‘muito desgostoso’, escreve Sêneca, ‘se é que nos infernos persiste algum sentimento, de ver que o povo romano sobreviveria a ele’”. Então, em colchetes, Manguel lembra dois calígulas latino-americanos, “Videla e Pinochet, que certamente compartilharam desse desgosto”.
Neste hoje absurdo e surreal em que vivemos, pergunta-se Manguel: “como construir uma sociedade razoavelmente justa e adequadamente feliz?” As sete páginas seguintes debruçam-se sobre a República de um jeito tão interessante que dá vontade de largar seu livro e pegar o texto clássico de Platão. Não quero aborrecer vocês com este papo de clássicos, mas o exemplo de Manguel é matador.
Se vocês lerem as próximas linhas, correm o sério risco de mergulhar na leitura da República. Depois de dizer que este diálogo não tem o rigor acadêmico “que nossos preconceitos atribuem aos filósofos clássicos”, diz que o leitor encontra, “com surpresa (e gratidão), um remoto antepassado dos desopilantes diálogos lógicos de Alice no país das maravilhas”.
Acho que já dei spoiler demais. Limito-me, pois, a anotar as incríveis verossimilhanças entre casos como o de Calígula e Sêneca e a dura realidade que vivemos neste malfadado século XXI. Aliás, não resisto a mais um “causo” clássico lembrado por Manguel: Sêneca, que foi questor, cônsul e conselheiro imperial de Tibério, Calígula, Cláudio e Nero, redigiu o discurso de defesa de Nero perante o Senado romano no julgamento por ter assassinado a própria mãe. “Sua conduta servil de nada lhe valeu. Com base em provas forjadas, foi acusado de conspirar contra o imperador, e Nero o condenou ao suicídio.” No momento de sua morte, Sêneca “demonstrou a digna atitude estoica que seus livros recomendavam: ‘Onde estão os preceitos de sabedoria (...) num momento como este? (..) Acaso havia alguém que ignorasse a crueldade de Nero? Que mais faltava àquele que mandou assassinar a mãe e o irmão senão ordenar também a morte de quem foi seu preceptor e conselheiro?’ Dizendo essas palavras, Sêneca cortou com dignidade as próprias veias no ano de 65. Talvez tenha sido sua última lição”.
Quanta atualidade. Clássicos são obras que permanecem ao longo do tempo. Por isso a música de concerto também é chamada de clássica. Porque se concentra na música capaz de vencer o tempo, capaz de continuar assumindo a cada geração novos significados. Quando Shostakovich ridicularizou Stálin em Lady Macbeth de Msensk pagou alto preço pela ousadia. Esquecemo-nos, com frequência, de que são raros os que pagam o preço por adularem, com gestos, subserviência e até obras musicais os poderosos de plantão. Há clássicos que se transformam e reaparecem, como Calígula, sempre imitado neste século XXI. Mas esta é outra história.
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