[Texto do discurso proferido pelo compositor João Guilherme Ripper na sessão da Academia Brasileira de Música em homenagem a Edino Krieger ocorrida no Espaço Guiomar Novaes, no dia 21 de março de 2023.]
Recebi do Presidente da Academia Brasileira de Música a honrosa e difícil missão de ser o orador na homenagem que hoje prestamos a Edino Krieger, ocupante da cadeira nº 34, que tem como patrono o compositor José de Araújo Vianna. Edino nasceu em Brusque, Santa Catarina, em 17 de março de 1928 e partiu na noite triste e chuvosa de 6 de dezembro do ano passado aos 94 anos; querido amigo, meu mentor e mestre, figura central de nossa música, compositor e gestor brilhante!
Pensei em um título para este pequeno texto que procura sintetizar o legado que Edino deixou como compositor e gestor cultural. Cheguei ao seguinte: “A potência da ideia criadora e criativa em Edino Krieger”; potência, não apenas como expressão de força, mas potência na concepção de Aristóteles como possibilidade, capacidade de vir a ser a partir do não-ser; realização plena a partir da ideia. Criadora por que é inventiva, fértil, fecunda; criativa por ser original, inventiva e inovadora.
Para falar sobre a vida e carreira de Edino proponho que nos imaginemos parados no centro de um entroncamento de onde partem diversas estradas que ele pavimentou e percorreu. Qual delas devemos seguir em primeiro lugar? São muitas e nosso tempo é limitado.
Vamos escolher uma das estradas e começar a caminhada:
Edino participou do histórico Festival Internacional da Canção em 1967 e 68 como compositor de Fuga e Anti-Fuga, com texto de Vinicius de Moraes, e Passacalha conquistando o quarto lugar em ambas as edições. A partir dessa experiência imaginou um festival similar voltado para a música contemporânea. Escreveu o projeto e apresentou-o ao Diretor do Museu da Imagem e do Som, Ricardo Cravo Albim. Aconteceu o que poucos previam: o comitê organizador recebeu 90 partituras inéditas. O Festival da Guanabara foi realizado com grande sucesso no Theatro Municipal do Rio de Janeiro em 1969.
A segunda e última edição aconteceu em 1970. Mas o impulso de criar um festival dedicado à música contemporânea continuava lá. Edino converteu-o em novo projeto de uma mostra dedicada à música brasileira atual. Cinco anos depois, os festivais da Guanabara tiveram como consequência as Bienais de Música Brasileira Contemporânea.
O depoimento do compositor ao saudoso confrade José Maria Neves relata a gênese das Bienais que contou com a parceria e a visão de Myrian Dauelsberg, diretora da Sala Cecília Meireles:
Elaborei, então, o projeto das Bienais e saí à procura de apoio: do Governo Estadual, da Rádio MEC, do Ministério da Educação de Cultura. Durante anos, silêncio total. (…) Até que um telefonema de Myriam Dauelsberg, então marcando com sua gestão dinâmica a presença da Sala Cecília Meireles na vida musical da cidade e do país, fez ressuscitar o projeto das Bienais. “Encontrei seu projeto numa gaveta do MEC”. Disse-me. “Haveria alguma objeção em que a Sala Cecília Meireles assumisse as Bienais?”, perguntou. Claro que não havia, ao contrário: o importante era iniciar as Bienais, e sob a tutela da Sala o projeto tinha tudo para dar certo. E deu. (NEVES, 2008, p. 354).
A Bienal de Música Brasileira Contemporânea tornou-se o principal e mais longevo evento dedicado à música brasileira de nosso tempo. Quando Edino tornou-se Diretor do Instituto Nacional de Música, ela passou a ser produzida pela Funarte. Em 2023, será realizada pela 25ª vez, sem interrupções, na Sala Cecília Meireles, a despeito das crises financeiras que sempre espreitam a cultura e o orçamento público.
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Seguimos agora pela estrada que leva à Funarte, onde Edino abriu novos caminhos que trilhamos até hoje. Em 1979, concebeu, criou e dirigiu o Projeto Memória Musical Brasileira - Pro-Memus ligado ao Instituto Nacional de Música que era dirigido por Hermínio Bello de Carvalho. Entre as atividades do Pro-Memus estavam a recuperação, revisão, edição e difusão de partituras que mais adiante culminariam na criação do Banco de Partituras, hoje sob a responsabilidade da nossa Academia Brasileira de Música.
Com a saída de Herminio Bello de Carvalho do INM em 1981, Edino assumiu a direção e permaneceu no cargo até 1989, com a inestimável parceria da querida Valeria Peixoto. O confrade Ronaldo Miranda foi convidado a dirigir o Pro-Memus e levou-me como estagiário. Edino “premiou-me” logo de saída com a difícil tarefa de pesquisar, produzir, editar e publicar um catálogo de obras orquestrais brasileiras. Lembro que, naquele tempo, as máquinas de escrever ainda não haviam sido substituídas pelos computadores.
Pude testemunhar de perto o trabalho de Edino seu manancial inesgotável de projetos estruturantes para a música brasileira: Projeto Espiral, Projeto Orquestras, Projeto Bandas, Projeto Compositor Visitante, etc… todos eles realizados pela equipe técnica dedicada e comprometida que ele mesmo formou.
Tudo isso foi interrompido bruscamente em 1990 com a extinção da Funarte pelo Presidente da República recém-empossado Fernando Collor. Mas, a essa altura, o Instituto Nacional de Música já havia mudado o perfil de projetos dedicados ao desenvolvimento de corais, bandas e festivais estabelecendo novos parâmetros para políticas públicas na área da música. Edino sabia que iniciativas como essas precisam de tempo e persistência para criar raízes e apresentar resultados. Bons projetos em curso muitas vezes são destruídos por aqueles deveriam zelar pela sua continuidade. Pouca coisa mudou nos últimos 33 anos.
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Caminhamos agora pelas estradas onde as ideias criadoras e criativas nascem como música no âmago do universo poético do compositor. Comparo duas obras orquestrais que mereceram do confrade Ricardo Tacuchian uma pormenorizada análise em seu artigo Uma trilogia sinfônica de Edino Krieger: Ludus Symphonicus e Canticum Naturale. Tacuchian ressalta que as obras “revelam impulso rítmico, alternando com expressão lírica, controle formal e grande domínio idiomático da orquestra moderna”.
Ludus Symphonicus foi escrita em1965 em três movimentos: 1. Intrata Armonica; 2. Cadeza alla corda; 3. Toccata Metalica. Edino constrói a série dodecafônica baseada na superposição de diferentes acordes tonais apresentados na abertura do primeiro movimento e depois desenvolvidos em blocos harmônicos separados por interlúdios. No segundo movimento, a cargo das cordas, o compositor trabalha diferentes texturas; na Toccata final concentra-se na exploração de diferentes ritmos.
Em Canticum Naturale, obra de 1972 para soprano e orquestra, Edino parte das gravações realizadas pelo ornitólogo Dalgas Frish para construir um painel sonoro da Amazônia. A obra é estruturada em dois movimentos executados sem interrupção: 1. Diálogo dos pássaros e 2. Monólogo das águas. Aqui o compositor utiliza módulos sonoros, clusters, micro-tonalismo e super-compassos de duração medida em segundos sobre os quais a solista reproduz os cantos dos pássaros. O segundo movimento explora mais o adensamento e rarefação das texturas, como as corredeiras e remansos do Rio Amazonas.
Nosso tempo aqui é curto para uma análise aprofundada das partituras. Além disso, há excelentes artigos disponíveis com a apreciação crítico-musical de obras de Edino. Entretanto, a simples comparação entre Ludus Symphonicus e Canticum Naturale chama a atenção para o fato de que as diferentes técnicas adotadas estão totalmente indissociáveis da expressão; o fazer é indissociável do modo de fazer; a ideia criativa da criadora como o Logos que gera a cada manifestação um novo universo com lógica própria.
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Outra estrada: antes dos Festivais da Guanabara, das Bienais da Música Brasileira Contemporânea e do INM-Funarte, Edino já imaginava instituições especializadas na difusão música brasileira. Assumiu a direção artística da Rádio MEC e, em 1961, fundou a Orquestra Sinfônica Nacional com este propósito. Hoje, a OSN está vinculada à Universidade Federal Fluminense e traz em seu DNA a mesmo missão conferida quando foi criada.
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Retornemos ao ponto de partida, o entroncamento de onde podemos contemplar as diversas estradas. Percebo que Edino segue basicamente o mesmo método na composição e na gestão, adotando o planejamento a priori, a construção cuidadosa e bem elaborada que em nada assemelha-se a um formalismo estéril, mas que adequa-se aos resultados pretendidos em cada iniciativa proposta.
Pergunto-me onde e como Edino aprendeu a conjugar música, poesia e pragmatismo; subjetividade e objetividade; análise e sonho; os voos da criação musical e a gestão de processos institucionais complexos que envolvem pessoas e recursos em torno de um mesmo objetivo. Pergunto-me como Edino reúne na mesma pessoa o compositor genial, ao mesmo tempo singular e múltiplo, e o gestor que concebe e sabe realizar grandes ideias; de onde tirou a inesgotável vontade de obrigar que tais ideias tomem forma e passem a existir para além da existência de quem as concebeu.
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Em uma carta ao compositor venezuelano Reynaldo Hann, Marcel Proust escreveu: “Em todos os momentos de nossa vida nós somos descendentes de nós mesmos, e nosso passado é o atavismo que pesa sobre nós, conservado pelo hábito”.
Deixemos as estradas que daqui partem e voltemos nosso olhar para as estradas que aqui chegam. Em uma delas vemos Aldo Krieger e o menino Edino em Brusque; as aulas de violino; a movimentada vida musical da casa, os serões, as serenatas, as bandas, os conjuntos choro e de jazz. Em outra via, encontramos Edino já no Rio de Janeiro, estudando com o mestre Koellreutter no Conservatório Brasileiro de Música desenvolvendo-se como criador; enriquecendo-se com a profícua convivência de Santoro, Guerra-Peixe e Eunice Catunda no Grupo Música Viva. Na via ao lado, vemos as aulas com Aaron Copland e Peter Mennin nos Estados Unidos. Outro caminho traz Edino participando intensamente da vida musical, ouvindo atentamente e escrevendo suas críticas musicais no Jornal do Brasil. E, então, divisamos a estrada mais larga e ensolarada de todas, que traz o feliz encontro com seu amor da vida toda Maria de Lourdes, a querida Nenem, e seus filhos Eduardo, Fabiano e Fernando.
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Peço desculpas pelo abuso da metáfora. Reconheço que a imagem das estradas resvala no lugar comum. Mas ela tem o condão de lembrar que nós, membros da Academia Brasileira de Música fundada por Villa-Lobos, caminhamos por vias abertas por nossos antecessores. No norte das iniciativas promovidas pela ABM encontra-se agora Edino Krieger que a presidiu em diversas ocasiões. A ele prestamos hoje essa afetuosa homenagem enquanto o entronizamos em nossa memória e no panteão dos grandes compositores brasileiros de todos os tempos.
Queridos confrades e confreiras, nossa virtude primeira será sempre aquela de tomar o legado que recebemos para levá-lo adiante em nossas atividades artísticas, acadêmicas e em nossa participação na ABM. Nisso consiste a tal “imortalidade acadêmica”. Seguiremos sempre na expectativa de ir mais longe, com o olhar no futuro da música brasileira, acompanhando as pegadas deixadas por aqueles que nos precederam.
Muito obrigado por tudo, Edino!
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