Yara Bernette, 100 anos

Se não fôssemos tão descuidados com nossa memória e nossos artistas, não teríamos deixado passar em nuvens tão brancas uma das principais efemérides musicais brasileiras de 2020: no último dia 14, foi centenário de nascimento de uma das mais artistas destacadas que já tivemos, Yara Bernette.

Sim, a bem da verdade ela nasceu em Boston, mas com seis meses de idade já estava por aqui. Teve o talento moldado pelo tio, José Kliass, que, nascido na Rússia, foi pupilo, em Berlim, de Martin Krause – discípulo e secretário particular de Liszt –, e se tornou um dos principais professores de piano do Brasil. Mais tarde, Yara também se tornaria uma docente de renome, lecionando, entre 1972 e 1988, na Escola Superior de Música de Hamburgo.

Em uma época em que a reputação dos pianistas media-se sobretudo por suas realizações fonográficas, ela gravou aquele que é um dos álbuns mais importantes e icônicos já lançados por um pianista brasileiro: para o cultuado selo Deutsche Grammophon, a primeira integral dos Prelúdios Op. 23 e Op. 32 de um compositor com o qual ela possuía enorme afinidade, o russo Serguei Rachmaninov (1873-1943).

Ao ser lançado em LP, em 1970, o disco, curiosamente, saiu incompleto: por motivos de limite de duração, ficaram de fora os prelúdios Op. 23 nº 3 e Op. 32 nº 11 e nº 12. Apenas em 2017, ao chegar ao CD, o registro foi editado na íntegra, testemunhando de forma eloquente não apenas o virtuosismo incandescente de Bernette, como seu lirismo intrínseco e apuro com a qualidade sonora.

Yara Bernette em óleo sobre tela de Flávio de Carvalho [Reprodução]
Yara Bernette em óleo sobre tela de Flávio de Carvalho [Reprodução]

Econômica, sua carreira fonográfica incluiria ainda os trios nº 1 e nº 3 de Villa-Lobos com seus colegas de Artistrio, o violinista Ayrton Pinto e o violoncelista Antonio del Claro, em 1988; e, em 1995, Encores, álbum independente com direção artística de Denis Wagner Molitsas e Evandro Pardini. Molitsas e Pardini lançariam ainda, em 2000, por seu selo Master Class, dentro da série Grandes Pianistas Brasileiros, duas gravações de obras raras do repertório, feitas no período em que ela residia em terras germânicas: o Concerto nº 2 do russo Nikolai Medtner (1880-1951), com a Filarmônica de Munique dirigida pelo célebre Rudolf Kempe; e o Concerto nº  2 do norte-americano Everett Helm (1913-1999), com a Sinfônica de Bamberg e regência do também afamado Ferdinand Leitner.

Hoje em dia, graças à internet, estamos liberados do suporte físico, e podemos ouvir vários documentos da arte e do talento de Yara Bernette. Como, por exemplo, sua realização titânica do Concerto nº 3, de Rachmaninov, em 1973, em São Paulo, sob regência de Simon Blech:

 

Ou as Bachianas Brasileiras No. 3, de Villa-Lobos, com a Osesp dirigida por ninguém menos que Eleazar de Carvalho, no Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão:

 

Isso para não falar no documentário Yara Bernette, uma personalidade artística, onde é possível ouvi-la contar suas histórias, e matar saudades de seu carisma:

 

Ou ainda em um breve noticiário argentino, do qual constam raríssimas imagens da jovem pianista, em 1958:

 

Bernette empenhou-se em divulgar a música brasileira, especialmente de Villa-Lobos e Camargo Guarnieiri – que lhe dedicou o Ponteio nº  45, a Valsa nº 7 e o Concerto nº 3 para piano e orquestra, e do qual ela gravou a Dança Negra:

 

Mas Bernette parece ter sido uma personalidade que transcendeu os limites de sua arte.

Afinal, em 1951, foi retratada em óleo sobre tela de Flávio de Carvalho. E, no ano seguinte, dublou, ao piano, a atriz Tônia Carrero no filme Appassionata, de Fernando de Barros, que marcou a estreia nas telas de um certo Paulo Autran:

 

Sua notoriedade era tamanha que, em crônica de 1952, ninguém menos do que Tarsila do Amaral escreveu: “Quem não conhece Yara Bernette? Quem não lhe conhece o dom de empolgar, quando suas mãos maravilhosas percorrem o teclado de um piano?” 

O centenário de nascimento parece uma oportunidade excelente para revisitar ou, simplesmente, conhecer pela primeira vez essa artista de personalidade tão marcante.

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