O violonista e pesquisador Humberto Amorim parece reunir as ferramentas de arqueologia musical a uma espécie de bolsa de Mary Poppins, de onde saem incessantemente surpresas de todos os calibres. No início de 2020, Amorim – professor da UFRJ, autor de Ricardo Tacuchian e o Violão (2014) e Heitor Villa-Lobos e o Violão (2009), publicados pela Academia Brasileira de Música – divulgou dois grandes achados: uma partitura de Villa-Lobos, a Canção do Poeta do Século XVII dada como extraviada; e a localização da revista “O Guitarrista Moderno”, que registra a presença do violão clássico nas casas da burguesia brasileira na primeira metade dos 1800.
Se o manuscrito de Villa é importante como documento e resgata uma peça – não havia nem cópia da partitura original –, os onze números do “Guitarrista”, periódico publicado em 1857 pela editora imperial brasileira, redefinem a historiografia do instrumento. Além das descobertas notáveis, Humberto coleciona histórias curiosas e rocambolescas que envolvem o garimpo de raridades e de elos perdidos na música para violão.
Algumas estão na reportagem da Folha de S. Paulo publicada em 20 de janeiro. Mas o pesquisador amazonense radicado no Rio não para de tirar novidades da sua bolsa sem fundo. No momento, dedica-se à catalogação da maior coleção privada de partituras para violão no mundo, a de Ronoel Simões (1919-2010), alojada no Centro Cultural São Paulo – isso depois de encerrar a pesquisa na Biblioteca Alberto Nepomuceno, na UFRJ.
“O trabalho na coleção da BAN está pronto, só falta publicar”, diz ele. “Há manuscritos para violão dos anos 1820, 1830 e 1840, as modinhas do século XIX da Coleção Guilherme de Mello, manuscritos autógrafos de João Octaviano Gonçalves, como o Improviso, para violão solo, e o Nhapopé, primeiro octeto de violões de que se tem notícia escrito no Brasil. Tem também peça de Stefana de Macedo, primeira mulher a se apresentar na programação oficial do Theatro Municipal do Rio empunhando um violão; uma suposta peça para canto e violão de D. Maria II, filha de D. Pedro I com Maria Leopoldina, além de métodos desde a primeira metade do século XIX, como o de J. Meissonnier, Attilio Bernardini, de Melchior Cortez e até de Rosinha de Valença”, lista Amorim. Os métodos, aliás, são outro braço da pesquisa do violonista, assunto de um livro “praticamente pronto”.
“São, por baixo, 45 mil partituras na coleção Ronoel, além de centenas de registros fonográficos antigos, gravações caseiras e outros documentos raros”, descreve Amorim, que tem como parceiro nessa pesquisa Jefferson Motta, violonista e pesquisador do 1)CCSP. Assim como na BAN-UFRJ, há na coleção paulistana uma sala à parte onde ficam os documentos em estado precário de conservação. “É urgente a necessidade de intervenção sobre o material com fungos e traças, ali tem coisa muito rara, como uma transcrição de ária de Carlos Gomes e peças para canto e violão de Fernando Hidalgo, do alto século XIX, material que precisa ser recuperado. Ao menos estamos fotografando e registrando”, adianta ele.
A coleção, diz ele, é “difusa” e a previsão de encerramento alcança agosto de 2021. “O material é impressionante. Até o fim da vida, Ronoel se recusava a vender peças e dizia: ‘ainda estou comprando’”. Só em manuscritos há cerca de 1.500 partituras “com autógrafos de pioneiros como Aymoré, do Bernardini, Isaías Sávio”, lista o pesquisador.
Mas ainda há outras descobertas recentes. Uma delas, feita no acervo Mozart de Araújo, alojado no CCBB Rio, é a do caderno de violão de Nair de Teffé, primeira-dama do Brasil em 1913 e 1914. Casada com Hermes da Fonseca, era caricaturista e abriu os salões do Palácio do Catete para o choro e o maxixe. Além de violonista, foi compositora – ou pelo menos escreveu uma peça para violão, Caboclo, que Amorim identificou. “O caderno dela traz um retrato muito singular – com dezenas de obras – do repertório escrito estudado à época”, ressalta.
Fabio Zanon, que acompanha o trabalho de Humberto Amorim, considera que “até recentemente, a gente tinha uma ideia muito vaga do que acontecia no violão brasileiro antes de 1920. A pesquisa de Humberto reconfigura o violão”, afirma. Além dos levantamentos, Humberto Amorim vem gravando peças como as de Fernando Hidalgo e vai registrar também a de Teffé. O trabalho, além do entusiasmo e da persistência, parece quase infindável na sua descrição – ele já levantou cerca de 30 arquivos brasileiros e europeus. “São raridades, resgates, tesouros perdidos da nossa cultura”.
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Comentários
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Luciana, um privilégio que a…
Luciana, um privilégio que a história do violão no Brasil seja alvo do seu olhar jornalístico atento, sensível e competente. Obrigado!
Conheci o Sr.Ronoel Simões…
Conheci o Sr.Ronoel Simões há mais ou menos uns 25 anos e pude ir em sua casa naquela ocasião para que ele desse seu aval na interpretação de um jovem violonista na época.
Além de um acervo maravilhoso de partituras era procurado por muito jovens violonistas que sempre queriam sua opinião, na execução desse maravilhoso instrumento.
Que ótimo a recuperação dessas obras.
E que venham maravilhas!