Música Rara Brasileira é um nome que, a rigor, poderia ser dado a quase toda a música brasileira de concerto. Pois, exceto uma parcela pequena das obras de Villa-Lobos, e uma ou outra ópera de Carlos Gomes, nossa produção nesta área continua sendo largamente ignorada no próprio país – e a falta de registros do repertório e a escassa disponibilidade de partituras aptas para performance constituem um dos gargalos estruturais desta área.
Pois bem: apaixonado pelo tema, o escritor e diplomata Wellington Müller Bujokas resolveu, em plena pandemia, dar sua contribuição para o enfrentamento deste problema. Em parceria com o Zenon Instituto Cultural, começou, em dezembro, o projeto Música Rara Brasileira, com uma página no Facebook e uma playlist no YouTube, dentro do canal do Zenon Instituto Cultural, postando, em todas as sextas-feiras, a partir de 18 de dezembro último, gravações de obras de nossos compositores, por intérpretes do Leste europeu e do Brasil.
“O Zenon Instituto Cultural é um instituto com sede em Fortaleza, criado para divulgar a obra do artista plástico Zenon Barreto (1918-2002). Os diretores do Instituto são o filho e a nora dele, Frederico Barreto e Nara Vasconcellos Barreto. Eles mudaram faz muitos anos para a Bulgária, para lá dar educação musical para os filhos. E começaram a usar o instituto para promover cultura brasileira na Bulgária”, disse Bujokas à Revista CONCERTO no último sábado, dia 23, às vésperas de um concerto do projeto Música Rara Brasileira em Moscou, intitulado Estados da Alma, no qual seriam tocados (e gravados) trios para cordas de Lindembergue Cardoso (1939-1989), Harry Crowl (1958), Ernst Widmer (1927-1990), Frederico Richter (ou Frerídio, 1932) e L. C. Vinholes (1933), por Olga Garshina (violino), Andrei Chaporov (viola) e Andrei Berezin (violoncelo).
Bujokas conta que o Zenon Instituto Cultural realizou vários projetos de artes plásticas, cinema e música, incluindo, em 2019, o I Festival de Música Clássica Brasileira, com doze concertos em diversas cidades búlgaras. O diplomata ajudou com obtenção de partituras e curadoria do evento, e 31 obras gravadas na ocasião podem ser conferidas no YouTube.
Música Rara Brasileira começou, por sinal, com uma peça para a mesma formação: Pós-Aboio a três (2020), criado especialmente para o projeto por Paulo Costa Lima (1954), e executado em Moscou por Daria Svernik (violino), Yulia Vendeland (violoncelo) e Darya Filippenko (viola).
A forte presença de músicos do Leste europeu é explicada pela história pessoal de Bujokas. Nascido em Itararé (SP), criado no Paraná e autor dos livros de poemas Estudos (Travessa dos Editores, 2012) e Um canto anaeróbico (Quelônio, 2021), Bujokas trabalha no Itamaraty, e atua há sete anos em países da ex-URSS, tendo residido em Nursultan (capital do Cazquistão) e Moscou (Rússia) antes de se radicar em Baku (Azerbaijão), onde serve atualmente.
Sua seleção de obras e compositores é ampla e variada, abordando de autores século XIX a criadores contemporâneos, passando pelos grandes nomes de nossa música no século XX. Por exemplo: em Baku, Rashid Aliyev (violino) e Narmin Rzayeva (piano) resgataram a rara Sonata nº 3, da fase dodecafônica de Francisco Mignone (1897-1986).
O quarteto da Opensoundorchestra registrou, em Moscou, quatro quartetos de cordas, incluindo o precioso Quarteto nº 1, de Claudio Santoro (1919-1989).
A compositora Kilza Setti (1932) está representada pela Seresta do Flautista Desapaixonado, tocada em Baku por Nijat Mamedov (flauta) e Rabiya Imanguliyeva (piano).
E o refinado e ambicioso Trio com piano de Alberto Nepomuceno (1864-1920), uma das mais gloriosas páginas de nossa música de câmara, foi enfrentado com bravura, no Azerbaijão, por Rabiya Imanguliyeva (piano), Rashid Aliyev (violino) e Ayuub Aliyev (violoncelo).
Vários músicos brasileiros também participam da série. Como Edson Scheid, violinista radicado em Nova York, que gravou Paganini para o selo Naxos, e contribuiu com um registro vigoroso da Partita para violino solo de Guilherme Bauer (1940).
Ou o pianista Durval Cesetti, que fez, em Natal (RN) várias gravações para o projeto, como, por exemplo, Duas Peças e Coda, da fase dodecafônica de Guerra Peixe (1914-1993).
O violinista Edson Queiroz registrou, em Belo Horizonte, o Poema Abstrato, de Wellington Gomes (1960).
O Ensemble LaFlauta, formado por alunos de música da USP de Ribeirão Preto, sob a direção de Cássia Carrascoza, apresentou o Estudo nº 1, de Paulo C. Chagas (1953).
E em Tiradentes, no âmbito do Festival Artes Vertentes de 2020, que lembrou os dez anos de falecimento de Almeida Prado (1943-2020) programando diversas peças do compositor, Sofia Leandro registrou sua Sonata para violino solo.
Quando Bujokas atendeu a Revista CONCERTO, 18 vídeos já estavam no ar. Há toda uma programação semanal feita, até 31 de dezembro, e, pela quantidade de gravações já realizadas e planejadas, o projeto deve prosseguir também em 2022. Abrangente e variada, a lista de repertório inclui, além de vários autores já representados na iniciativa, nomes como Marcílio Onofre (1982), Paulo Rios Filho (1985), Alexandre Lunsqui (1969), Armando Albuquerque (1901-1986), José Siqueira (1907-1985), Mario Ficarelli (1935-2014) e as compositoras Ilza Nogueira (1948) e Maria Helena Rosas Fernandes (1983), dentre muitos outros. Vale a pena acompanhar com muito carinho.
Leia também
Notícias Morre, aos 93 anos, a mezzo soprano Christa Ludwig
Notícias Prepare-se: quinze concertos para ver ao vivo ou na internet
Notícias Sala Cecília Meireles vai formar gestores para a música clássica
Notícias Seis candidatos disputam final do Festival Almeida Prado de Piano
Textos Memória desprezada, por Luciana Medeiros
Textos Paula Pires: fazendo história com Stockhausen, na casa do compositor, por João Marcos Coelho
É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.
Comentários
Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.