Teresa Berganza (1933-2022): beleza, precisão, musicalidade

por João Luiz Sampaio 14/05/2022

Não é raro que momentos mais interessantes de uma entrevista aconteçam quando o gravador é desligado e o bloco de anotações, fechado. Foi assim em um encontro com a mezzo soprano espanhola Teresa Berganza em 2009, quando esteve no Brasil para uma série de master classes promovidas pela Cia. Ópera São Paulo.

A entrevista aconteceu no palco do antigo Espaço Promon. E, no final, enquanto a ajudava a descer a pequena escada, ela parou, e com um olhar sério disse: “Sabe, no fundo eu acho que tive muita sorte na vida. Muita sorte”. Desceu os últimos degraus. E saiu pelo teatro cantarolando baixinho a Habanera da Carmen.

Berganza morreu na sexta-feira, 13, aos 89 anos, em sua casa, nos arredores de Madri (ela vivia a alguns quarteirões do Palácio do Escorial). Segundo a família, deixou apenas uma instrução: “Não quero anúncios públicos, nem velórios, nem nada. Vim ao mundo e ninguém soube, por isso quero o mesmo quando eu partir”.

Difícil que seja assim. Pois entre a chegada e a partida, Berganza foi um fenômeno. O New York Times falou ontem do “carisma e da sensualidade que exalava no palco”. Na France Musique, um articulista disse que “sentiremos falta de uma voz única, precisa e brilhante, que recriava com precisão as notas e as palavras”. “Um grande sol espanhol se apagou. Todo o planeta da ópera está chorando”, anotou a Diapason. 

Elogios também não faltaram em vida. Herbert von Karajan afirmou certa vez que Berganza era a grande Carmen do século XX. Mas a cigana na ópera de Bizet foi uma conquista relativamente tardia, que começou com o repertório barroco, com Mozart e com compositores do bel canto, “como aliás deve sempre ser”, dizia.

Nascida em 1933, Berganza iniciou a carreira interpretando zarzuelas. Mas logo deixou a Espanha franquista e encontrou na França o espaço para desenvolver sua relação com a ópera. Cantou Cherubino, em As bodas de Fígaro, e Dorabella, em Così fan tutte, ambas de Mozart; Rosina, no Barbeiro, e Angelina, na Cenerentola, ambas de Rossini. E, dos anos 1950 aos anos 1970, esses papeis se tornariam centrais em sua trajetória. 

 

"Rossini e Mozart se prestam muito bem ao jovem cantor, pois são dois grandes mestres da beleza do canto e podem ser a base sobre a qual se constrói a técnica”, ela disse em sua passagem pelo Brasil em 2009. Foi assim com ela. "Minha voz se prestava a um repertório muito maltratado naquela época, como era o caso das óperas de Rossini, e pude participar da reavaliação desses papéis. Havia demanda para isso.”

A agilidade e a precisão foram marcas dela neste repertório, do qual deixou gravações marcantes (é ela a Rosina do filme dirigido por Jean-Pierre Ponnelle, apenas um exemplo de sua qualidade nessa música). Com a chegada dos anos 1970, sentiu-se pronta para papeis mais pesados. O primeiro deles foi Charlotte, no Werther, de Massenet.

É uma obra do final do século XIX sobre uma história fundadora do romantismo, Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe. E é significativa de seu tempo a decisão de Massenet de dar à personagem feminina protagonismo equivalente ao de Werther. Ela está na própria estrutura da ópera. Os dois primeiros atos são do jovem poeta; os dois últimos, de Charlotte, que ganha dimensão que não tem no texto de Goethe. 

A introdução do terceiro ato é uma das passagens mais inspiradas da partitura. E então Charlotte aparece, pronunciando duas vezes o nome de Werther. Há uma dimensão inteira da personagem no modo como Berganza canta essa rápida passagem. É quase um lamento, mas com uma precisão e foco que desvendam a complexidade da personagem. 

[Ela não gravou comercialmente Werther. Mas há no YouTube dois registros de apresentações em vídeo e um em áudio, no Covent Garden de Londres, 1979, com regência de Michel Plasson e o tenor Alfredo Kraus. Não precisa mais do que isso.]

 

Berganza, na verdade, não gostava de Charlotte. Até concordava com o protagonismo que Massenet dá à personagem, mas ainda a via muito presa a um mundo controlado pelos homens, de onde vinham suas lágrimas. O mundo de Carmen também era assim, mas a imposição do masculino já se mostrava em decadência. Carmen não hesita perante os apelos de Don José, mesmo perante a morte. Não morre por amor, mas sim pela possibilidade de viver o amor que quiser. Era isso que a interessava.

Na gravação com Claudio Abbado em Londres, há uma riqueza de coloridos que talvez venha justamente da compreensão de uma personagem que se recusa a interpretar apenas um papel. O tom frenético da Seguidilha; as sombras da ária da carta; a frieza perante os lamentos do tenor no dueto final. Não eram várias Carmens em uma, mas uma só Carmen, gigante em seu sentido dramático.

Em uma masterclass na França, disponível no YouTube, ela apresenta um olhar bastante particular para a ópera. Bizet, diz, está muito mais próximo de Mozart do que de Puccini. Com isso queria ressaltar a necessidade da atenção à linha de canto, à beleza da construção da melodia, ao legato. Na sua voz, a ideia faz todo sentido. 

Na ópera, sim, e em uma outra faceta fundamental de sua sensibilidade artística: o repertório de canções. Há alguns registros de Brahms e Schumann, mas são poucos. Na música francesa, seu Fauré é tocante; seu Ravel, Sheherazade, envolvente. E há então o repertório espanhol. Anda, jaleo, nas canções espanholas antigas de Lorca, acompanhada pelo violão de Narciso Yepes, é testemunho da gravidade que emprestava a tudo o que cantava. De De Falla, há o Sombrero de tres picos, mas também – e principalmente – momentos como a Jota de sua Suíte espanhola.

 

Berganza também gravou música brasileira. Há um disco com Villa-Lobos e Francisco Braga, uma escolha bastante original. Com que convicção e delicadeza ela canta os versos da Canção do poeta do século XVIII, de Villa, “sonhei que a noite era festival e triste a lua/ e nós dois na estrada enluarada, fria e nua”. Em Braga, as Canções nordestinas são um prazer. 

O que fazia no repertório de canções, ela atribuía aos 18 anos em que estudou piano. E ao estudo dos textos. Também dizia não ver sentido em se aproximar de um papel de ópera sem compreender o mundo em que vivem as personagens. E estudava a ópera inteira. “Interpretar um papel significa estar atento ao que seus colegas fazem. Você constrói seu personagem individualmente, mas ganha compreensão ainda maior da partitura quando entende o que compositor imaginas para os demais papeis.”

 

Na masterclass de 2009, ela orientou alunos em árias de Verdi (“Como eu viveria para sempre na beleza dessa música!”), Mozart, Donizetti (“Que voz linda! Mas sem intenção, ela não significa nada”) e Bellini (“Atenção à linha de canto, bel canto, bel canto!”). E depois falou um pouco da carreira. Lembrou com afeto de Maria Callas, que no começo de sua carreira tinha por ela um cuidado quase maternal. Elencou os grandes maestros com quem trabalhou. “Cada um com uma personalidade diferente, forte, marcante. E se isso aparecia no que faziam era só porque entendiam e tinham respeito pela partitura.” 

Sobre isso, parecia bem certa. “Não há segredo nenhum na interpretação. Está tudo na partitura.” Parece fácil, mas não é. A não ser quando ouvimos cantores como ela. 

Teresa Berganza durante sua masterclass em São Paulo em 2009 [Divulgação]
Teresa Berganza durante sua masterclass em São Paulo em 2009 [Divulgação]

 

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