Neojiba inaugura nova sede no Parque do Queimado, em Salvador
Em uma época em que as palavras que mais vemos associadas em nosso país a educação e cultura são “corte” e “contingenciamento”, a Bahia resolveu apostar em um dos mais belos programas de formação musical do continente. Idealizado, criado e dirigido pelo pianista e regente Ricardo Castro desde 2007, o Neojiba (Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia) está ganhando uma sede própria no Parque do Queimado, em Salvador.
Cerca de 6 mil crianças, adolescentes e jovens em toda a Bahia são contemplados com as ações de educação musical do projeto. Sua estrutura organizacional conta com 13 núcleos, em Salvador e outros cinco municípios do estado. O programa tem como ponto de partida a prática coletiva e o conceito de multiplicação: no momento em que começa a aprender um instrumento, cada membro do Neojiba leva esse aprendizado a outras pessoas, outros núcleos. Sua face mais conhecida é a Orquestra Juvenil da Bahia, que já fez turnês internacionais e se apresentou com astros do quilate de Midori, Maxim Vengerov, Jean-Yves Thibaudet, Maria João Pires e Martha Argerich. Partindo de um orçamento, nos primórdios, de R$ 200 mil, o programa conta hoje com um contrato de gestão de R$ 14 milhões.
A data inicialmente anunciada de inauguração da nova sede, 1o de julho, sofreu adiamento para não coincidir com os festejos da canonização de Irmã Dulce, o “Anjo Bom da Bahia”. Até o fechamento desta edição, o novo dia era a segunda-feira, dia 9. O complexo inclui um palco com capacidade para abrigar uma orquestra de câmara, plateia com lotação de 140 lugares, além de seis salas de ensaio com isolamento acústico, um piano Steinway B e estrutura de bastidores. Orçado em pouco mais de R$ 13 milhões, foi custeado majoritariamente pelo BNDES (R$ 8.275.000, via Lei Rouanet) e pelo governo do Estado da Bahia (R$ 4 milhões).
“A ideia inicial era uma grande sala, em um grande complexo, mas, com a crise, eu redimensionei”, explica Castro. Mesmo assim, ele garante que a estrutura inaugurada agora é apenas a primeira fase do projeto. Já está em andamento a segunda etapa – a construção de uma sala de ensaios para grande orquestra, com 120 músicos. Em seguida, será planejada uma sala sinfônica para uma orquestra desse porte. “Nos moldes do New World Center, em Miami, com capacidade de público relativamente pequena, porém um material top para ensaiar e tocar. O foco é a formação. A gente quer que os meninos sintam na veia o que é possível fazer quando as condições são ideais”, conta o pianista, que, em 2007, deixou a Europa e sua sólida carreira internacional de concertista para voltar a seu estado natal e implantar o Neojiba – declaradamente inspirado no El Sistema, o programa de educação musical criado na Venezuela, em 1975, por José Antonio Abreu (1939-2018). “Uma das coisas que me impressionou foi o investimento do maestro Abreu e do governo venezuelano em infraestrutura. A qualidade do trabalho subiu vertiginosamente quando, de repente, os jovens começaram a ter espaços adequados”, diz.
No começo, o Neojiba contava com o Teatro Castro Alves (TCA) – na opinião dele, o “único equipamento adequado à música orquestral” da capital baiana. Mas ele já sabia que o TCA seria insuficiente devido à agenda da casa ser dividida com outros grupos. “A gente tinha que pedir autorização para ensaiar no Castro Alves. Fazíamos nossas coisas em função do que o teatro oferecia.” E, além disso, havia dificuldade em utilizar o TCA como espaço de formação.
“A gente não criou uma sala de concertos para Salvador. É um equipamento socioeducativo”, enfatiza. “O Neojiba, nesse parque, oferece não apenas o que há de melhor em tratamento acústico para você estudar, mas também do ponto de vista térmico – eu costumava dizer, brincando, que, antes da invenção do ar-condicionado, não dava para ter orquestra nessas latitudes. Temos também a oportunidade de oferecer atendimento psicossocial a nossos integrantes, liberdade para programar e segurança nesse espaço físico. É muito importante a família saber que sua criança está em um espaço que oferece segurança.” Ironia das ironias: chefiado por um dos maiores pianistas brasileiros de todos os tempos, o Neojiba não ensinava o instrumento. “A gente não tinha onde dar aulas”, conta Castro, que, agora, chamou dois alunos seus recém-formados na Suíça para compartilhar conhecimentos com os jovens musicistas baianos.
O lugar escolhido para a nova sede, o Parque do Queimado, tem uma área de mais de 10 mil metros quadrados; abrigou, em 1852, a primeira distribuidora urbana de abastecimento de água do Brasil e foi tombado pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Trata-se de uma das últimas áreas verdes do Centro Antigo de Salvador, localizado na Liberdade, bairro tido como um dos mais vulneráveis da cidade.
Ricardo conta que houve vários projetos anteriores para o parque – inclusive transformá-lo em prisão. “O entorno ficou muito perigoso. A cidade não conhece o parque”, conta. A transformação de uma área histórica, localizada na região central da cidade, com entorno degradado, em sala de concertos, evoca óbvios paralelos com a história da Sala São Paulo. Um paralelo assumido por Castro. “O planejamento da nova sede do Neojiba foi feito com base nos melhores parâmetros mundiais”, diz. “A gente vai tocar Beethoven mal porque está na Bahia? Porque a gente vive num país pobre? Não é verdade. Uma das primeiras pessoas que sacaram isso no Brasil foi John Neschling, quando ele disse: ‘A Osesp me interessa, mas eu quero uma sala sinfônica’. Quem teria a coragem de pedir a um político uma sala sinfônica? Nós sabemos que a Osesp só decolou quando a sala apareceu. Não vale a pena você construir um bangalô, porque está à beira da praia, e dizer que vai colocar uma orquestra para tocar lá.”
Ele advoga que a revitalização do parque seja uma ferramenta de transformação desse entorno. “Um espaço desses tem que dialogar com a comunidade. Você não pode só fazer um estacionamento para as pessoas chegarem de helicóptero e Mercedes, estacionarem lá, consumirem cultura e você ignorar a comunidade.” Para tanto, ele criou uma iniciativa como Neojiba Gerações, juntando as pessoas de terceira idade do bairro com as crianças do programa.
A fim de obter a excelência almejada, Castro foi atrás da Nagata Acoustics, empresa internacional de consultoria acústica, com escritórios em Tóquio, Los Angeles e Paris, que esteve envolvida em mais de setenta projetos de salas de concerto no Japão e, fora do continente asiático, em projetos como Pierre Boulez Saal (Berlim), Philharmonie de Paris, Elbphilharmonie (Hamburgo), Walt Disney Concert Hall, Sala de Concertos do Mariinski (São Petersburgo) e Centro de Música de Helsinque, entre outros.
“Eu sei que no Brasil a gente tem salas ótimas, como a Sala São Paulo e a Sala Minas Gerais. Mas, entre essas melhores empresas do mundo, a única que trabalhou com equipamentos educacionais foi a Nagata. Trabalharam com Barenboim em Berlim, trabalharam com El Sistema”, explica. “Além da construção de uma sala para uma orquestra tocar, eles conhecem, sobretudo, o som de um espaço onde tudo isso dialoga com espaço de formação no mais alto padrão.”
Castro foi irredutível em manter a escolha de materiais da Nagata. Assim, a madeira do palco veio do Canadá, enquanto as cortinas foram confeccionadas com material belga. Tudo isso para garantir uma experiência acústica única, que envolve a plateia no concerto. “Uma das características dos trabalhos da Nagata é que, se alguém do público respirar, o músico acha que ele está dando uma entrada. Eles colocam o público dentro do palco. Com essa nova acústica, pretendemos reeducar o público. Nosso público hoje está acostumado a ir a concerto e ligar o celular, filmar o concerto… Você não ouve mais silêncio”, afirma.
Essa nova experiência será testada já no primeiro fim de semana após a inauguração, quando serão tocados 16 programas de quarenta minutos de duração cada. Além disso, haverá uma programação de portas abertas. “Vamos levar todas as atividades do Neojiba para o parque e convidar a população para assistir: como a criança aprende, como ensina, como se faz atendimento psicossocial, como ensaiamos”, enumera. Em agosto, a atração é um festival de canto coral, incluindo um coro jovem da Suíça e grupos amadores de Salvador.
Tudo isso, contudo, sem perder o foco naquilo que Ricardo considera essencial: a formação. “Da mesma forma que hospital não pode ser construído para dar emprego a médico, escola de música não pode ser construída para dar emprego a professor de música”, preconiza. “A finalidade é o aluno. Tem que ser o aluno.”