Plena de música encantadora, L’italiana in Algeri, de Rossini, que ganha montagem no Theatro São Pedro, aborda assuntos espinhosos e confirma sua atualidade
Precocidade e agilidade. Até meados do século XIX, esses predicados tendem a dar o tom à vida de vários compositores. Com o celebrado compositor italiano Gioachino Rossini (1792-1868), não foi diferente. Sua biografia registra que começou a compor aos 12 anos de idade. Aos 18, estreou sua primeira ópera, La cambiale di matrimonio, passo de um intenso fluxo criativo que viria se interromper de forma igualmente precoce, quando aos 37 anos encerrou voluntariamente sua carreira operística com Guillaume Tell. Entre esses dois títulos, temos um universo de obras hiperpopulares – como o imbatível Il barbiere di Siviglia – e outras que, apesar de não serem desconhecidas, poderiam ser mais encenadas nos palcos brasileiros, como L’italiana in Algeri, que neste mês ganha uma produção do Theatro São Pedro.
Estreada em Veneza, em 1813 – quando então o compositor contava com apenas 21 anos –, e, reza a lenda, escrita em apenas 18 dias (dados historicamente mais precisos aumentam essa conta para 27, o que ainda é assombroso), sua partitura é considerada um marco na consolidação estilística de Rossini. Não por acaso, a um ouvido familiarizado com alguma ópera composta posteriormente (tal como Barbiere), logo na primeira escuta L’italiana in Algeri irá soar igualmente familiar e agradável. “Elegância, leveza, brilho: estes são os pilares do belcanto. Contrariamente ao que se pensa, o belcanto não se refere somente ao modo de cantar. Ele é um mundo, uma concepção sonora onde a voz é o centro de equilíbrio e, ao mesmo tempo, referência para os instrumentos: referência de dinâmica, de articulação, de sonoridade”, esclarece Valentina Peleggi, responsável pela direção musical do espetáculo. “Tocar Rossini é desafiador e requer músicos muito refinados, pois, se por um lado os instrumentos hoje ganham em afinação (penso especialmente nos sopros), por outro ganham em volume sonoro e metal. Equilíbrio e leveza, ar no som, articulação ativa e propulsiva são os maiores objetivos em uma execução contemporânea”, relata a regente sobre os desafios dessa partitura.
“A música de Rossini, com leveza e engenhosidade, expõe o absurdo e o ridículo que existem nas relações de poder.”
Livia Sabag, diretora cênica
A tarefa de recriar esse título para nosso tempo e lugar não se limita às questões de ordem musical. Seu enredo traz a história de tirania e caprichos de Mustafá, rei de Argel, disposto a dispensar a esposa, Elvira, para se esbaldar com uma mulher nova e para ele exótica, a italiana (e compromissada) Isabella. Tudo aparentemente muito distante de nós. Mas apenas aparentemente… “Apesar de escrita há mais de dois séculos, essa ópera é explicitamente atual no Brasil de 2019, tal como a jornada da corajosa protagonista Isabella para se livrar das garras de Mustafá, figura clássica do homem poderoso autoritário que acredita que sua masculinidade e sua honra residem no poder de subjugar as pessoas, especialmente as mulheres”, analisa Livia Sabag, que assinará a direção cênica da produção. “Vivemos um momento particular em que a luta pela igualdade (racial, de gênero e de classe social) tem sofrido grandes ataques. A música de Rossini, com leveza e engenhosidade, expõe o absurdo e o ridículo que existem nas relações de poder.”
Apesar da triste atualidade e da pertinência do enredo, o transporte de uma história com elementos narrativos tão distantes mostra-se sempre desafio para qualquer régisseur. “Esta produção situa a trama em uma Argélia imaginária contemporânea, que acolhe personagens e acontecimentos comuns a tantos outros lugares e contextos, e busca desvelar algumas dessas ‘coincidências’. Nessa releitura da obra, as personagens e os ambientes descritos no libreto foram transformados, sem, no entanto, se distanciarem da obra original”, conclui Sabag, que irá comandar um elenco estrelado por Ana Lucia Benedetti (Isabella), Stephen Bronk (Mustafá), Anibal Mancini (Lindoro), Ludmilla Bauerfeldt (Elvira), Rodolfo Giugliani (Haly), Catarina Taira (Zulma) e Douglas Hann (Taddeo).
AGENDA
Ópera L’italiana in Algeri, de Gioachino Rossini
Valentina Peleggi – direção musical / Livia Sabag – direção cênica
Dias 2, 4, 7, 9 e 11, Theatro São Pedro de São Paulo