A Naxos é uma Festa

por Jorge Coli 01/12/2019

Importância do projeto Música do Brasil faz lembrar trabalho pioneiro de Irineu Garcia com a gravadora Festa

Os jovens que gostam de música não sabem como era difícil ouvir composições brasileiras no passado. Quase só em concerto, porque discos eram raros. 

A gravadora Festa, criada pelo jornalista Irineu Garcia, foi pioneira. Ruy Castro fez uma evocação de Garcia em sua coluna na Folha de S.Paulo. Conta que ele era pobre. “Não havia então leis de incentivo e ministérios da Cultura – Irineu era seu próprio incentivo e ministério. Contando tostões, pagava os custos de gravação e prensagem no estúdio da Odeon. O Itamaraty lhe comprava um lote de exemplares para distribuição no exterior, e o resto da tiragem ia para as lojas disputar com o hit parade.”

Começou com a ideia de registrar poemas. Na novidade que eram os LPs, bolachas “lentas”, rodando a 33 rotações por minuto, não mais nas velhas em 78 rpm, poetas deixaram suas vozes dizendo seus versos. O primeiro, de 1955, trazia Manuel Bandeira de um lado e Carlos Drummond de Andrade do outro.

Ana Paula Orlandi Mourão Delfim fez, na ECA/USP, um mestrado que conta a história da Festa: o catálogo se ampliou com Vinicius de Moraes, Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia, Cecília Meirelles, Murilo Mendes, João Cabral de Melo Neto e outros. Publicou também teatro (o monólogo As mãos de Eurídice, de Pedro Bloch, na voz de Rodolfo Mayer); intérpretes como Procópio Ferreira, Paulo Autran e a mítica “diseuse” Margarida Lopes de Almeida deixaram poemas e contos nos sulcos do vinil. Uma lembrança pessoal: eu tinha 9 anos quando ganhei O pequeno príncipe, de Saint-Exupéry, com um elenco encabeçado por Paulo Autran. Ouvi tanto que decorei. Tenho até hoje na cabeça o “vivi só. Sem amigos com quem pudesse conversar”, naquela voz inconfundível. A trilha sonora foi criada por um Antonio Carlos Jobim de 30 anos.

Na Festa, havia ainda música popular. Eram concepções requintadas: o disco Canções do amor demais, com Elizeth Cardoso; e o Festa dentro da noite, com Vadico. Modinhas fora de moda teve como intérprete a fabulosa Lenita Bruno, hoje não lembrada como deveria. Interpretava Nepomuceno, Carlos Gomes, Gallet, Villa-Lobos, atravessando a fronteira em direção à assim chamada “música clássica”.

Naxos

E a Festa também se lançou nesse empíreo com uma coleção de música brasileira. Abriu com Valsas de esquina e, em seguida, Doze valsas choro, de Mignone, o compositor ao piano.

Publicou também grandes obras para orquestra. Não tinha recursos para fazê-lo em estúdio: servia-se de gravações ao vivo da Orquestra Sinfônica Brasileira, tomadas da Rádio Ministério da Educação e Cultura. De Lobo de Mesquita a Santoro e Camargo Guarnieri, era um tesouro sonoro ao qual o público tinha acesso.

A Festa durou até os anos 1970, quando seu criador se exilou em Portugal. Irineu Garcia era de esquerda – e o universo dos nomes ligados à Festa demonstra essa vinculação: Claudio Santoro, Arnaldo Estrella, Edoardo de Guarnieri, Pablo Neruda, Nicolás Guillén, edição de dois discos soviéticos. Com o golpe de 1964, as facilidades de contato com autoridades oficiais cessaram. Mas a Festa durou o suficiente para produzir um tesouro de que Gracita Bueno, sobrinha de Irineu Garcia, hoje cuida e o qual busca divulgar. Devo à Festa muito de meus prazeres intensos e de meus mirrados conhecimentos em matéria musical.

Com este projeto, composições escritas nestas terras e excelentes intérpretes atuais, tão abundantes, traçarão uma história sonora

O que era para ser uma breve introdução ao assunto principal acabou tomando conta de quase toda esta página. Ainda assim, há espaço para o objetivo: contar meu entusiasmo por dois discos recentes que recebi da Naxos, que criou a coleção The Music of Brazil, de enorme importância, equivalente hoje ao que foi a Festa no passado. 

Há o CD que apresenta sonatas para violino e piano, uma de Leopoldo Miguez – sólida, bem construída e levemente convencional –, e duas de Glauco Velásquez, fulminantes de genialidade, de invenção moderna. São interpretadas por Emmanuele Baldini e Karin Fernandes: violino de cores douradas e sensuais em fusão com o piano. 

O outro disco é consagrado a Nepomuceno: O garatuja, Série brasileira e Sinfonia em sol (a Festa dera a primeira versão gravada com Edoardo de Guarnieri). Que grande, que notável orquestra, a Filarmônica de Minas Gerais, sob a batuta de Fabio Mechetti!

Com este projeto que a Naxos inicia, as composições escritas nestas terras e os excelentes intérpretes atuais, tão abundantes por aqui, traçarão uma história sonora. E as obras terão grande alcance, já que a Naxos conta com excelente distribuição internacional. 

Nota do editor: acaba de ser lançado o volume 3 da Coleção Música do Brasil. Leia mais na seção Lançamentos na pág. 45.