O compositor Leonardo Martinelli e o libretista Jorge Coli falam da ópera O peru de Natal, que estreia no Theatro São Pedro de São Paulo
Neste mês, o Theatro São Pedro, em São Paulo, realiza um pequeno milagre de continuidade na vida lírica brasileira. Não estamos exagerando: se já é raro conseguir levar ao palco uma ópera contemporânea, que dirá um ciclo de três? Contudo, passados seis anos, o libretista Jorge Coli vê concluída sua trilogia operística brasileira, com O peru de Natal, inspirado no conto homônimo de Mário de Andrade (1893-1945), e música de Leonardo Martinelli. Com regência de Miguel Campos Neto e direção cênica de Mauro Wrona, o espetáculo terá os cantores da Academia de Ópera e os instrumentistas da Orquestra Jovem do Theatro São Pedro, nos dias 14 e 15 de dezembro.
“Como primeira ópera, é uma aventura por um terreno ao mesmo tempo conhecido e incógnito. Conhecido pelo repertório adquirido como espectador e acadêmico e incógnito porque apenas quando se embrenha em um projeto como esse é que se toma ciência concreta de suas complexidades”, afirma Martinelli. “Apesar da cultura operística ser pouquíssimo abordada, e mesmo valorizada, pela chamada ‘música clássica contemporânea’ (vale lembrar a frase de Pierre Boulez, que certa vez disse que a solução para a ópera era ‘explodir os teatros de ópera’), acredito que é justamente por meio dela que esse tipo de linguagem musical desempenha seu máximo poder expressivo, e por isso onde ela pode ser melhor apreciada e abrir-se para outros públicos”, diz o compositor.
Quanto ao processo criativo, ele conta que valoriza muito “a relação entre música e texto, uma escrita vocal que preze a musicalidade inerente às palavras, mas que ao mesmo tempo explore relações afetivas complexas, para além de uma mera confirmação sonora do significado verbal, que não se reduza a uma ‘trilha sonora’ do enredo”. Daí vem o maior desafio de O peru, segundo ele: “O conto original de Mário de Andrade dá abertura a muitas interpretações. O libreto de Jorge Coli me possibilitou acesso musical a esse enredo, e coube a mim elaborar uma música que ao mesmo tempo se alinhe à narrativa e permita compreensão para além dela. Para isso, foi fundamental estabelecer um processo colaborativo com os cantores do elenco e o diretor de cena; penso que a ópera sempre foi um processo coletivo de criação cuja culpa recai apenas no compositor”.
O libreto, assim, induziu que se colocassem na música elementos que em princípio não esperaríamos ouvir em uma partitura de Martinelli, como pedaços de funk carioca em um recitativo e um ritmo afro-brasileiro como o ijexá servindo de base para um bloco carnavalesco do fim da ópera. “Comecei meus estudos composicionais elaborando série dodecafônicas e cá estou fazendo um som ‘proibidão’”, brinca o compositor. Além disso, por sugestão do libretista, no começo da ópera, há um solo de piano “no espírito de Debussy”.
“Cada ópera da trilogia tem um solo instrumental importante: trombone em O menino e a liberdade, flauta em O espelho. Fiz essa sugestão porque, no fim da vida, Mário de Andrade não ia dormir sem tocar algo de Debussy ao piano”, explica Coli.
Sua trilogia começou em 2013, quando, sob encomenda de Bea Esteves, o Theatro São Pedro encenou O menino e a liberdade, inspirada em crônica de Paulo Bomfim (1926-2019), com música de Ronaldo Miranda. Para fechar a trinca da Revolução Francesa, vieram O espelho (2017), baseado em Machado de Assis, focando a igualdade (com música de Jorge Antunes), e agora O peru de Natal, abordando a fraternidade.
A obra fala do primeiro jantar de Natal de uma família após o falecimento do austero patriarca, e a ocasião acaba se convertendo em ritual de libertação, com uma grande confraternização no fim, aos versos: “Ô peru!/Ô bidu!/Larga o jururu!/Quero amar!/Todo mundo!/Venha aqui/Minha flor/Vem sentir/Meu amor!/Ô peru!/E viva o peru!”.
“É uma passagem da morte para a vida corpórea, para o prazer da gula, do amor e da dança”, diz Coli. “Trata-se de um conto autobiográfico, e, para reforçar esse aspecto, alterei o nome do protagonista, que no original se chama Juca, para Raul, que era o segundo nome de Mário”, conta o libretista. Efetivamente, o nome completo do guru do modernismo brasileiro era Mário Raul Morais de Andrade. “Se eu tivesse imaginação, seria escritor. Não tenho, mas é um prazer adaptar algo que já existe”, ele afirma.
A trilogia de Coli termina com “O peru”, mas a associação de Leonardo Martinelli com a ópera está apenas começando. A temporada 2020 do Theatro Municipal de São Paulo deve trazer mais uma criação do compositor: Navalha na carne, inspirada na peça homônima de Plínio Marcos (1935-99), que tem estreia prevista para o dia 18 de junho, com um elenco formado pelo tenor Fernando Portari, a mezzo soprano Luisa Francesconi e o barítono Michel de Souza.
AGENDA
Ópera O peru de Natal, de Leonardo Martinelli
Miguel Campos Neto – direção musical
Mauro Wrona – direção cênica
Dias 14 e 15, Theatro São Pedro, São Paulo