Trinta anos de quarteto

por Luciana Medeiros 26/04/2022

Entrevista com Sidney Molina, violonista do Quarteto Quaternaglia

“Juntar quatro violões é quase utopia.” A frase é de Egberto Gismonti, em entrevista registrada no DVD lançado em 2006 pelo Quaternaglia. Pois o quarteto surgido em 1992 foi muito além dessa utopia pontual e está celebrando trinta anos de atuação ininterrupta. Em maio e junho, lança dois álbuns completamente diferentes, ambos gravados no segundo semestre de 2021. Down the Black River  traz quatro obras de Sérgio Molina para quatro violões, piano e orquestra de cordas, inéditas em disco, e será lançado na Sala São Paulo no dia 28 de maio, com participação de Rogério Zaghi (piano) e da Orquestra Sinfônica de Guarulhos regida por Emiliano Patarra. Já Bellinati’s Mosaic revisita sete peças de Paulo Bellinati para a formação – dessas, três dedicadas ao Quaternaglia – e mais uma homenagem inédita de Sérgio Assad ao compositor paulista. Esses maratonistas da música de câmara atravessaram a pandemia com olhos no futuro. A bem da verdade, tiveram, desde sempre, a ousadia de buscar repertório, transcrever e adaptar peças e ampliar as obras para quarteto de violões como dedicatários e por encomendas. A Revista CONCERTO conversou com Sidney Molina, fundador do grupo, responsável pelo violão de sete cordas, professor e crítico musical.

O Quaternaglia surgiu em 1992 e na época o quarteto de violões era um formato bem raro. Como vocês se encontraram? A ideia já era formar um quarteto?
A formação original consistia em quatro alunos de Edelton Gloeden. Cada um de nós vinha de um lugar diferente. Eduardo Fleury e Breno Chaves, que fizeram parte da primeira formação, haviam tido uma experiência de quarteto na faculdade, como alunos de Henrique Pinto. Minha reação inicial à ideia foi meio cética – achava que era muito violão (risos). E não havia um modelo, não conhecíamos nenhum quarteto profissional àquela altura. Fomos conhecer a história da formação depois, já tocando. Mas havia uma bússola importante: Leo Brouwer, grande compositor cubano, era o ídolo dos quatro. E havia criado, nos anos 1980, peças para quatro violões. Decidi aceitar porque tinha acabado de pegar meu primeiro violão de luthier, de Sergio Abreu, e queria tocar mais. O Duo Abreu aliás, também é influência de primeira hora. Estreamos numa programação artística ligado à ECO-92, no pátio da PUC-SP. E já com cachê!

Naquela altura não devia haver repertório extenso para quarteto de violões.
Fazíamos duos também. Mas a sinalização foi tão positiva que engrenamos. Não havia modelo. Havia um histórico de quartetos no Rio de Janeiro e em Curitiba que fomos conhecer depois. Dos profissionais, descobrimos o espanhol Los Romeros, bem mais antigo que nós; e o Los Angeles Guitar Quartet, já gravando quando começamos. Mas, no fim de 1992, fechamos um programa inteiro em quarteto no Conservatório Brooklin Paulista, fomos premiados no concurso de música de câmara da Santa Marcelina e passamos por uma situação curiosa: a de torcer para não irmos à finalíssima do concurso Eldorado.

Mas por quê? Torcendo contra?
É que não tínhamos, naquela época, um concerto com orquestra ensaiado. Não esperávamos ser aprovados na primeira prova. E passamos por duas, tocando no antigo Cultura Artística. Aí foi o problema. E agora? (risos). Naquela altura, era tudo muito novo para nós. Foram grandes experiências. Eram concursos de música de câmara em geral; saíamos daquele mundo só do violão e estávamos conversando com maestros, quartetos de cordas. Hoje nosso repertório com orquestra é bem amplo.

Qual foi o trabalho fonográfico que representou um ponto de inflexão na primeira fase?
Em 1995 e 1996, fizemos o primeiro, que tem Stravinsky, Leo Brouwer – com toda a obra que ele tinha escrito até então para quatro violões – e Villa-Lobos. Em seguida, o Antique, com obras dos séculos XVI, XVI e XVIII. Repertórios opostos! Em 2000, veio Forrobodó, produzido por Egberto Gismonti, com todo mundo escrevendo para nós, uma coisa que a gente não imaginava – peças de Paulo Bellinati, uma de Sérgio Assad que havia sido escrita para o quarteto Los Angeles... Gismonti havia se encantado com as peças de Brouwer e compôs três bem densas, difíceis. Foi desafiador e também um salto em muitos sentidos, na escrita para violão, na interpretação.

São em maior número as peças dedicadas ao quarteto ou as encomendadas?
Nós recebemos muitos presentes. E não somente pensando na formação de quatro violões, mas no Quaternaglia mesmo, considerando que temos Fábio [Rammazina] no segundo violão fazendo aquelas melodias, Thiago [Abdalla] ali no meio, regendo do agudo para o grave, Chrystian [Dozza] com aquele som, a serenidade, o ritmo preciso, Sidney no violão de sete cordas na outra ponta fazendo o baixo. Outros quartetos acabam tocando esse repertório. Era uma coisa que a gente não esperava, o repertório ser alimentado pelo próprio trabalho. É muito gratificante ver peças que a gente acompanhou nascer no caderno do compositor, experimentando com ele, editadas, gravadas por quartetos japoneses, europeus, americanos. Ou fazer uma master class numa universidade americana e os músicos com a partitura dedicada a nós, perguntando “o que é um baião de gude?” (risos). Mas algumas encomendas são marcantes. A peça de Leo Brouwer, nosso ídolo, o fato de termos tocado e gravado sob a regência dele, por exemplo. Encomendamos a faixa-título do disco Bellinati’s Mosaic a Sérgio Assad, que fez um encadeamento de temas do Paulo. Assad, eu arriscaria, é hoje o compositor brasileiro com mais encomendas de intérpretes de ponta no mundo. Às vezes se considera o mundo do violão um caso à parte e se esquece de que ele está levando a composição brasileira a um alto nível de universalização.

Um dos dois discos que vocês estão lançando reúne peças de seu irmão Sérgio Molina escritas para o Quaternaglia estrear no festival Round Top, no Texas. Como foi esse trabalho ao longo das edições do evento?
Começamos a viajar na virada dos anos 2000: Montevidéu, Havana – onde ganhamos um concurso internacional –, países da Europa, Austrália e Estados Unidos, onde já tocamos em 18 estados. E somos habitués do Round Top desde 2002. O diretor, o extraordinário pianista James Dick, é o visionário que criou essa estrutura no Texas. Fomos tocar na série de música de câmara – os primeiros violonistas na história do evento. E os primeiros brasileiros! A cidade é pequena, praticamente no campo, com um instituto fenomenal: um teatro para mil espectadores, séries importantes de concertos, incríveis instalações, moradias de estudantes. O festival de verão dura seis semanas. A acústica do teatro é perfeita para violão. A partir da primeira participação, fomos convidados a voltar, e foi então criada uma série especial dedicada ao violão. Em 2005, apresentamos a primeira peça de Sérgio Molina, numa situação extraordinária – por questões políticas, Leo Brouwer proibiu que o Concerto itálico, que já havíamos tocado no Brasil, tivesse estreia norte-americana. E pedimos a Sérgio a primeira das quatro peças encomendadas pelo Round Top: The Journey of Weary Souls.

Essas quatro peças não foram pensadas para um conjunto, um disco. Como você avalia o resultado?
Elas são muito diferentes e se complementam bastante bem – da faixa título, com inspiração amazônica, ao Quinteto para um outro tempo, em referência ao Quarteto para o fim dos tempos  de Messiaen. A mais recente é Song of the Universal, em que ele usa como base um trecho de poema de Walt Whitman transformado em canção e trabalha como de trás para frente, fazendo surgir a melodia sem as palavras. É um antigo sonho nosso fazer a gravação dessas obras. 

O outro disco, Bellinati’s Mosaic, tem pegada completamente diferente e se aproxima dos gêneros da música popular e tradicional brasileira. 
Paulo Bellinati foi um dos primeiros compositores que se interessaram por escrever para nós. Ele tem um pensamento orquestral em relação ao violão, tanto que no início dos anos 1990, no disco Violões do Brasil, gravou tocando vários instrumentos da família violonística. Quando ele viu que havia um quarteto profissional disponível, passou a colaborar conosco. Pensamos num projeto em homenagem aos 70 anos do Paulo, regravando e buscando novas versões das músicas para quarteto, que exploram idiomas musicais diferentes – tem valsa, baião, jequibau, maracatu, frevo, maxixe, com participação dele próprio e do percussionista Ari Colares, grande especialista em ritmos brasileiros. Cada peça dele virou um sucesso. Por exemplo: estávamos tocando em Houston, e no intervalo um americano nos procurou no camarim perguntando “vocês não vão tocar A furiosa de Bellinati? Vim de Dallas especialmente para ouvir essa música com vocês!”. Tivemos que tocar no bis! Down the Back River ganhou o Proac da Secretaria de Cultura, tivemos uma bela orquestra de cordas com regência de Emiliano Patarra e participação do pianista Rogério Zaghi. Já o “mosaico” de Bellinati é lançamento da GuitarCoop. Praticamente, gravamos os dois discos ao mesmo tempo.

A atual formação tem 12 anos. E Fabio Ramazzina está praticamente desde o início. Como é a logística de trabalho habitual de vocês e como funcionou na pandemia?
O Quaternaglia sempre trabalhou de forma democrática, tanto artisticamente quanto na gestão do grupo. Não há um diretor musical. Vamos tocando juntos, experimentando as ideias. É um processo demorado, que só dá certo com muito ensaio. Entendemos que um grupo de câmara profissional precisa de um trabalho constante e regular, tenha ou não compromissos – e geralmente temos (ainda bem!), o que implica mais e mais ensaios. Até a pandemia, tínhamos dois ensaios longos por semana, fixos, fora o estudo individual para chegarmos prontos. Na pandemia, precisamos interromper, depois fomos testando encontros virtuais e presenciais com a segurança de espaços abertos e máscaras. Aliás, demos sorte, de certa maneira. Nosso último concerto antes de tudo fechar foi a culminação de uma longa turnê pelos Estados Unidos: tocamos nossa versão de West Side Story, de Bernstein, no dia 6 de março de 2020, no Symphony Space, na Broadway, na temporada da New York City Classical Guitar Society. No fim, a situação toda levou a essa feliz coincidência: dois discos, cada qual dedicado à obra de um diferente compositor brasileiro. É quase um resumo da trajetória de 30 anos do Quaternaglia!

Obrigada pela entrevista. 

Sidney Molina (divulgação)
Sidney Molina (divulgação)

AGENDA
Quaternaglia
Rogerio Zaghi
– piano
Orquestra GRU Sinfônica
Emiliano Patarra – regente
Dia 28, Sala São Paulo