Em suas memórias, Am I Too Loud?, Gerald Moore, que acompanhou durante décadas os maiores artistas líricos do século XX, define a dinâmica que se estabelece no palco entre um pianista acompanhador e um cantor.
“Como deve ser inspirador para o cantor, ao ensaiar, sentir que seu parceiro ao piano dedicou-se a conhecer a música tanto quanto ele, estudando o texto, consciente daquele pequeno e estranho recanto que se aproxima, antecipando-o ao seu lado – e não respondendo depois – em sua inflexão”, escreve ele.
E continua: “Não há discussão a respeito do tempo porque ele deve sempre seguir o andamento necessário para que o cantor desenvolva a frase. E aqui, o acompanhador encontra novo material a cada artista com quem trabalha”.
Moore falava especificamente de uma canção de Schubert, mas suas palavras voltaram à mente no final da tarde deste domingo, dia 8, ao receber a notícia da morte do pianista Rafael Andrade, aos 36 anos, vítima de uma parada cardíaca. E ao acompanhar as palavras de admiração publicadas desde então por cantores brasileiros em redes sociais. Todos chocados com a notícia – e relembrando sua paixão pela ópera, pela voz e o quanto seu conhecimento e sua atuação como pianista os ajudaram em suas carreiras.
Rafael Andrade estudou no Brasil com Marisa Lacorte e Marizilda Hein. A ópera surgiu cedo em sua trajetória artística e, depois de se formar em piano na Unesp, foi para a Europa, onde participou de temporadas do Palau de les Arts em Valência, como estudante e como músico convidado, e para os Estado Unidos, membro do Programa Domingo-Cafritz da Ópera Nacional de Washington.
Trabalhou lá fora ao lado de artistas como Plácido Domingo, Lorin Maazel, Alberto Zedda. No Brasil, apresentou-se ao lado dos principais cantores da atual geração e trabalhou na preparação de produções de óperas no Theatro São Pedro de São Paulo, no Theatro Municipal de São Paulo, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, no Festival Amazonas de Ópera. Recentemente, participou da estreia de Cartas portuguesas, de João Guilherme Ripper, em produção da Osesp, além de espetáculo no São Pedro dedicado a zarzuelas, ao lado da soprano Camila Titinger.
Conheci Rafael já se vão mais de dez anos, se a memória não falha. Foi em Manaus, durante uma edição do Festival Amazonas de Ópera. Fomos, um grupo, almoçar juntos e lembro, na hora de voltar ao hotel, da divertida discussão entre ele e o maestro Gabriel Rhein-Schirato sobre diferentes interpretações de determinado papel. Os nomes de sopranos surgiam um após o outro, ora com indignação, ora com sacadas bem-humoradas. O conhecimento enciclopédico não tinha nada de pedante. Era visceral, apaixonado, coisa de quem ama ópera e vive com ela ao seu lado, como uma companheira jamais abandonada.
Em diferentes oportunidades, tive a chance de convidá-lo a participar de séries de música contemporânea do Espaço Cultural CPFL, em Campinas, nas quais atuei como curador. A mais recente foi em 2017, em um programa de canções brasileiras com a mezzo soprano Ana Lucia Benedetti.
Estava sendo gravado na época um documentário sobre o popular e o erudito na música brasileira. E a equipe entrevistou os artistas. Andrade deu exemplos ao piano, falou de texto, de inspiração. No final, respondendo a uma provocação de João Marcos Coelho, que dirigia o documentário, os dois emendaram de improviso uma leitura de arrepiar de Condotta ell'era in cepi, ária de Azucena no Trovatore de Verdi.
Improviso? Quando se ama e conhece tanto ópera, nada é improvisado.
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