“Piedade, Senhor, que nos fizeste humanos demais!” A ária final de Anna de Cunha – após presenciar o assassinato de seu marido Euclides da Cunha por seu amante Dilermando de Assis –, resume o conflito que permeia a nova ópera do compositor carioca João Guilherme Ripper, Piedade, comissionada e estreada pela Orquestra Petrobras Sinfônica (Opes), como “concerto cênico”, no último dia 21 de abril. A soprano argentina Paula Almerares conseguiu transmitir toda carga dramática exigida para esse último lamento, sofrido e resignado.
Termina assim, após quase 90 minutos de música, a ópera Piedade, em que o libreto – também escrito por Ripper – reconta, de maneira livre, a história real que levou à morte o jornalista e escritor Euclides da Cunha, autor de Os sertões. E já vou logo dizendo que gostei muito! A ópera tem sólida estrutura dramática e é bem construída. A verve musical de Ripper atravessa as quatro cenas dando coesão a uma linguagem musical diversificada e acessível. A escritura acompanha e potencializa, com muita competência e habilidade, a narrativa, criando passagens de grande refinamento e beleza.
As quatro cenas são abertas por prelúdios de violão solo (em boa interpretação de Paulo Pedrassoli), que foram acompanhados por projeções de versos de Euclides da Cunha e do próprio Ripper (dispensáveis, a meu ver). Após expor a trama nas duas primeiras cenas (Euclides totalmente absorvido pelo universo dos sertões, e a daí decorrente carência de sua esposa Anna; o encontro de Dilermando e Anna e o despertar da paixão-desejo), Ripper cria, antes do trágico desfecho, um encontro entre Euclides e Dilermando no porto. Por meio de um tenso diálogo – que expõe o conflito amor-traição-fidelidade-honra diretamente entre os dois protagonistas –, Ripper logra um momento de alta intensidade. A última cena se inicia com uma singela canção de amor de Dilermando, acompanhada unicamente pelo violão (no melhor estilo de nossa MPB – mais um achado da inspirada partitura), até chegar o momento em que Euclides, do alto de sua autoridade e com toda determinação, surpreende os amantes na casa de Dilermando, no bairro de Piedade, com o intuito de se vingar para restabelecer a honra perdida.
Foi equilibrado – e pelas constituições físicas muito apropriado – esse elenco que cantou a estreia. A soprano Paula Almerares – de voz sonora e personalidade marcante – teve desempenho muito bom com lindas e emocionantes intervenções, em um papel exigente e de ampla tessitura. O barítono Homero Velho [que vem se notabilizando nas (infelizmente raras) estreias de óperas brasileiras – ele participou de A tempestade de Ronaldo Miranda e de Olga de Jorge Antunes] fez Euclides da Cunha e confirmou ser um grande artista, com ótima performance vocal e cênica. O amante Dilermando foi interpretado pelo tenor Marcos Paulo, que atuou com muita naturalidade. Paulo tem boa técnica e um bonito registro vocal, mas soou um pouco forçado nas regiões mais agudas. Foi bom o desempenho da Orquestra Petrobras Sinfônica, conduzida com energia por seu titular, maestro Isaac Karabtchevsky.
Talvez não se deva esperar muito da “encenação” de uma apresentação que se denomina “concerto cênico”. Ainda assim, foi pouco o que o diretor cênico André Heller-Lopes ofereceu nessa Piedade, especialmente quando comparado às ricas semiencenações dos títulos anteriores apresentados pela Opes (Alberto Renault em O amor das três laranjas, Carla Camurati em Caso Makropulos e o próprio Heller-Lopes em O anão). Cantores se apresentaram em figurino adequado e se movimentaram com correção, mas não vi nada de grande interesse no único acréscimo de cenário – uma cama do lado esquerdo do palco (ok, histórias de paixão-traição normalmente começam – ou terminam – na cama...) – nem nas imagens projetadas sobre uma longa tela que percorria toda a parte superior da boca de cena. O fato de o espetáculo ter sido realizado no espaço alternativo VivoRio (uma casa de shows para 2000 pessoas) talvez tenha restringido as opções de encenação.
A Petrobras Sinfônica já vinha se destacando pela proposta de, uma vez por ano, apresentar óperas pouco comuns em semiencenações. Ao ampliar essa proposta para uma encomenda de criação de uma nova partitura, como no caso de Piedade de João Guilherme Ripper, a Opes demonstra um compromisso com a criação erudita que deveria servir de modelo para outras orquestras e teatros nacionais.
[Nelson Rubens Kunze viajou ao Rio de Janeiro e assistiu à estreia de Piedade a convite da Orquestra Petrobras Sinfônica.]
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