Amor como redenção? Na ‘Fanciulla del West’, de Puccini, não necessariamente

por João Luiz Sampaio 19/07/2023

La Fanciulla del West é uma ópera sobre amor e redenção, mas só até certo ponto. Seus personagens vivem emoções cruas, duras, urgentes, é verdade, tudo de acordo com um compositor que se considerava “mais coração do que cérebro”. Mas em Puccini nem tudo precisa ser o que parece. E frequentemente não é.

Baseada em um texto de David Belasco, a ópera se passa no velho oeste americano, a paisagem que o cinema mais tarde tornaria célebre. O bar Polka é o ponto de encontro de mineiros, do representante do banco, do xerife Jack Rance. E todos gravitam em torno de Minnie, a dona do bar que é também mãe, professora e paixonite de todos. Chega, então, Dick Johnson, o bandido Ramirez disfarçado. Os dois se apaixonam. 

Quando o xerife, em seu encalço, o descobre na casa de Minnie, ela o desafia para um jogo de pôquer – se vencer, o amante estará livre; se perder, será preso. Ela trapaceia e vence. Mas os mineiros prendem Dick, só desistindo de levá-lo à forca no momento em que Minnie aparece e pede a eles compreensão – e a liberdade do homem que ama.

Logo no início do primeiro ato, um dos mineiros se desespera, com saudades de casa, e recebe ajuda dos demais para ir embora. Ninguém na verdade quer estar ali. Aquele é um lugar de passagem, um não-lugar do qual é difícil se livrar. Todos os personagens, ali para construir um futuro, vivem da memória do passado. Histórias de vida dos mineiros, um amor deixado para trás, um parente morto à distância, aparecem aqui e ali a todo instante.

E há a própria história dos protagonistas. La Fanciulla del West não tem árias ou duetos convencionais, daqueles que interrompem a narrativa. As cenas se sucedem em um fluxo contínuo, no qual se diluem as interações entre os três protagonistas. Mas elas estão lá e é a evocação do passado que as define. 

No primeiro ato, Jack Rance conta a Minnie como deixou sua casa atrás da única coisa capaz de fasciná-lo: o ouro. Ela, em seguida, fala da lembrança do amor de seus pais, e de sua vontade de encontrar algo parecido, um homem que ela pudesse amar. No segundo ato, quando a moça descobre que Dick é na verdade Ramirez, é ele então que embarca na narrativa de sua vida pregressa, dizendo que o crime lhe foi imposto desde o nascimento, uma vergonha que ele precisou esconder dela em nome do amor.

O velho oeste vai deixando assim de ser um lugar em que se imagina um futuro, mas antes o espaço em que o passado precisa ser expiado. E o futuro é não consequência do presente, mas uma tentativa de dele se libertar. É nesse contexto que a urgência das emoções dos personagens, tão à flor da pele em Puccini, se constrói. E aí, de novo, nada precisa ser o que parece. O amor de Rance por Minnie não é maior do que o prazer provocado pelo jogo. Johnson não parece ver na moça muito mais do que a chance de uma redenção que, no fundo, significa para ele mesmo muito pouco. E o grito de exclamação de Minnie, ao vencer Rance, “Meu! Meu”, parece menos uma declaração de amor a Dick do que a explosão de uma angústia interior - que Puccini faz acompanhar de música quase aterrorizante.

A montagem da cineasta Carla Camurati, em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo, recria a ópera de uma forma essencialmente realista, apesar de um ou outro elemento – o neon e o fliperama a decorar o Polka ou o carro estacionado na casa de Minnie – parecerem sugerir uma atemporalidade que, de maneira geral, a produção não persegue. Estão lá, afinal, nos cenários de Renato Theobaldo, o deserto ao fundo, as encostas de pedra, o chão arenoso, a vegetação seca, ou a decoração típica dos salloons. E os figurinos de Ronaldo Fraga, que tiram a inspiração do universo dos quadrinhos, pouco fazem para dar ao espetáculo a diversidade de registros que aparentemente propõe.

Isso é uma escolha, não um problema. A ideia de um pano de fundo que, na sua busca pelo realismo torna-se quase neutro, pode bem funcionar quando se tem uma direção de atores ou um design de luz eficientes, capazes de trabalhar com as camadas da história e as possibilidades expressivas da música. Mas, na iluminação de Wagner Pinto e Carina Tavares, é tudo sempre muito claro, chapado, solar. E a falta de nuances, em especial no primeiro e no segundo atos, torna a ação um pouco arrastada. Da mesma forma, se Licio Bruno e Martina Serafin, como Rance e Minnie, constroem uma presença cênica convincente, o Dick do tenor Gustavo Manzitti é amaneirado ao extremo, quase caricato em algumas passagens mais densas e dramáticas.

No fosso, Roberto Minczuk trabalha bem, à frente da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, a opulência pucciniana de algumas passagens, mas nem sempre consegue abandoná-las em favor de sutilezas na relação entre temas que, à luz da escrita contínua e da criação de atmosferas sonoras (e teatrais), são tão importantes na partitura. Força e intensidade não são a mesma coisa. Mas acabaram se confundindo, ao menos na récita de estreia, e o espetáculo acabou por isso perdendo um pouco de sua fluência.

Mas há, enfim, as vozes. Foi muito bom o desempenho do Coro Lírico Municipal e de seus solistas, como Paulo Queiroz, no papel de Nick. Como Ashby e Sonora, Andrey Mira e Johnny França saíram-se muito bem, tanto vocalmente como em cena. Serafin é uma Minnie que trabalha em cima de contrastes, sempre com muita autoridade e senso de estilo, em passagens mais líricas, como na cena com Rance no primeiro ato, ou no embate com Dick no segundo. Licio Bruno teve seu melhor momento no primeiro ato, um Rance sólido e de colorido interessante. Manzitti, por sua vez, depois de um começo hesitante, revelou um timbre abaritonado, sem sacrifício dos agudos perfurantes e metálicos. Bons resultados vocais em um espetáculo que, no final das contas, sofreu pela falta de organicidade de seus elementos. 

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Gustavo Manzitti e Martina Serafin em cena de 'La Fanciulla del West' [Divulgação/Rafael Salvador]
Gustavo Manzitti e Martina Serafin em cena de 'La Fanciulla del West' [Divulgação/Rafael Salvador]

 

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Comentários

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Excelente critica. Os cantores estão impecáveis a musica é maravilhosa...
Ps: Palmas para o trecho:
"No fosso, Roberto Minczuk trabalha bem, à frente da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, a opulência pucciniana de algumas passagens, mas nem sempre consegue abandoná-las em favor de sutilezas na relação entre temas que, à luz da escrita contínua e da criação de atmosferas sonoras (e teatrais), são tão importantes na partitura. Força e intensidade não são a mesma coisa. Mas acabaram se confundindo, ao menos na récita de estreia, e o espetáculo acabou por isso perdendo um pouco de sua fluência."

O maestro está sempre a confundir força com intensidade. Ele gosta de barulho!

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