Em um ano pródigo em notícias francamente desalentadoras para o saber, a arte, a cultura e a música em nosso país, poucos eventos parecem ser tão alvissareiros quanto os festejos do centenário de nascimento de Claudio Santoro (1919-1989).
Conforme João Luiz Sampaio mapeou na matéria de capa da Revista CONCERTO de março, músicos dos mais diversos cantos do país, ao longo do ano, vêm executando a música de Santoro. Isso é auspicioso não apenas pela definitiva consolidação de um dos nossos mais versáteis e brilhantes compositores no cânone nacional, como ainda por marcar um novo paradigma de como devemos festejar os autores brasileiros. Compositor brasileiro não é só Villa-Lobos, e parece digno esperar que nossos outros Santoros recebam as honrarias que vêm sendo justamente concedidas ao músico amazonense.
Especialmente enriquecedor, nesse processo de descoberta do legado de Santoro, é o encontro com sua produção sinfônica. Suas 14 obras do gênero credenciam-no como um dos principais (senão o principal) sinfonista brasileiro, e não parece descabido reivindicar para ele o status de nosso equivalente a Dmítri Shostakovich (1906-1975). Afinal, Rússia e Brasil não possuíam uma tradição sinfônica tão antiga como as dos países da Europa Central, e a existência de uma lacuna a ser preenchida permitiu que, em plena segunda metade do século XX, Santoro e Shostakovich se entregassem livremente à composição de sinfonias, uma atividade já em desuso entre seus contemporâneos germânicos ou franceses. A diferença básica entre eles é o carinho com que a Rússia trata seus compositores, e o desprezo com que o Brasil teima em lidar com os seus...
Na última quinta-feira, dia 24, na Sala São Paulo, a Osesp executou a Sinfonia nº 7 de Santoro, sob regência de Neil Thomson. Em uma daquelas decisões de programação difíceis de entender, a obra foi precedida pelo terceiro movimento da Sinfonia nº 2, do compositor alemão Kurt Weill (1900-1950). Nada contra Weill e sua música. Mas por que fazer só um movimento de uma peça tão pouco tocada? Não valeria a pena programar a sinfonia por inteiro, em outra ocasião? Ou, se a questão era o tamanho, substituí-la por uma peça em movimento único?
Enfim, o importante foi o que veio a seguir. Em quatro movimentos, a sétima sinfonia de Santoro é a afirmação madura de um criador, na época, com 41 anos de idade, e plenamente assenhorado dos recursos de sua arte. A partitura venceu o 1º Prêmio do Concurso Nacional instituído pelo Ministério da Educação e Cultura, em 1960, para comemorar a fundação da cidade de Brasília; foi estreada em 1964, sob regência do próprio compositor, em Berlim, com a orquestra da rádio local. E uma gravação da peça, sob a batuta de Santoro, chegou a circular em CD. Piano, celesta, harpa, xilofone e vibrafone reforçam a orquestração de uma sinfonia vigorosa, em que a retórica assertiva é aliviada, no terceiro movimento, por um saboroso scherzo de caráter inequivocamente “nacional”.
Não é preciso ser brasileiro para fazer bem a nossa música. Mas é necessário, obviamente, interessar-se por ela e seu estilo. Britânico radicado em Goiás, onde realiza um trabalho refinado e digno de nota com a filarmônica local, Thomson vem dando um exemplo a ser seguido não apenas pelos estrangeiros que aportam a nossas praias, mas mesmo pelos regentes brasileiros. Depois de ter feito gravações bastante sólidas das obras orquestrais de Guerra Peixe (1914-1993), abraçou a música de Santoro, defendendo-a com a convicção merecida – está gravando, com sua orquestra, a integral das sinfonias do compositor, para o monumental projeto Brasil em Concerto, da Naxos. A Osesp respondeu à altura ao entusiasmo e clarividência de Thomson. Afinal, o que se espera da melhor orquestra do Brasil é que toque, nesse nível de excelência e comprometimento, a melhor música de nosso país.
Só a sinfonia de Santoro já teria garantido uma noite inesquecível. Porém, após o intervalo, produziu-se uma ocasião muito adiada. Seis anos após vencer o Concurso Clara Haskil, na Suíça, tocando o concerto de Schumann, o brilhante Cristian Budu finalmente teve a oportunidade de interpretar essa obra com a Osesp. Budu tem muita química com Thomson e, pelo que se viu na Sala São Paulo, também com a orquestra. Seu temperamento de camerista, em diálogo constante com os instrumentistas da Osesp, ressaltou as vozes internas e o mundo intimista de Schumann. Se algum coração de pedra ainda resistisse a se render ao carisma poético de Budu durante a performance com a orquestra, ele dissolveu de vez as últimas barreiras no bis – um Arabesque que trazia toda a sensibilidade schumanniana sem um pingo de autoindulgência, ou excesso de sentimentalismo. Espera-se que agora, finalmente, a Osesp passe a convidá-lo com a frequência merecida, para executar os grandes concertos de seu instrumento. Budu merece. E nós também.
A Osesp apresenta a 'Sinfonia nº 7' de Santoro hoje, dia 25, e amanhã, sábado, dia 26, na Sala São Paulo; leia mais detalhes no Roteiro do Site CONCERTO.
Leia mais
Crítica ‘Suor Angelica’ ganha boa produção em Belém, por Nelson Rubens Kunze
Crítica O teatro barroco de Joyce DiDonato, por Irineu Franco Perpetuo
Crítica Cristian Budu em Barão Geraldo, por Jorge Coli