O projeto Brasil em Concerto, que em cinco anos vai produzir 30 CDs com gravações de 100 obras sinfônicas de compositores brasileiros, representa um passo inédito e gigantesco rumo a uma reavaliação internacional do que representa historicamente a música brasileira. Foi gestado na passagem de 2016 para 2017 e “costurado” pelo conselheiro Gustavo de Sá, do Departamento de Difusão Cultural do Itaramaty. Envolve três orquestras – as filarmônicas de Minas Gerais e de Goiás e a Osesp –, a ABM (Academia Brasileira de Música) e o selo Naxos (no Brasil, os discos serão lançados pelo Selo CLÁSSICOS). Em dois anos, tornou-se realidade. O primeiro CD acaba de ser lançado: traz a Filarmônica de Minas Gerais interpretando a Sinfonia em sol menor, o prelúdio de O Garatuja e a Série brasileira de Alberto Nepomuceno. Falei sobre o projeto na minha coluna de março na Revista CONCERTO. E, abaixo, reproduzo na íntegra a conversa com Gustavo de Sá, que conta a história incrível de um projeto grandioso como este e que custa aos cofres públicos apenas R$ 1 milhão. Com detalhes de excelência como o de todas as gravações contarem com um técnico excepcional, Ulrich Schneider.
Quando nasceu o projeto? Quanto tempo decorreu entre a primeira ideia e o lançamento do primeiro CD?
Gustavo de Sá: O projeto foi das primeiras iniciativas da atual gestão do Departamento Cultural do Itamaraty, que assumiu as funções na virada de 2016 para 2017. Os primeiros contatos e esboços foram feitos já em janeiro de 2017 e o trabalho foi contínuo e intenso desde então. Ou seja, o primeiro CD está saindo do forno exatamente dois anos depois de começado o projeto.
Qual foi a maior dificuldade em colocar no mesmo projeto três orquestras, a ABM e o próprio Itamaraty?
Gustavo de Sá: Por incrível que pareça, não houve rigorosamente nenhuma dificuldade na articulação entre as instituições. O projeto teve, desde o início, imenso apoio dentro do Itamaraty, em todos os níveis de comando, e nunca enfrentou qualquer obstáculo na instituição. As três orquestras e a ABM aceitaram imediatamente e com muito entusiasmo o convite para participar do projeto. O grande problema foi mesmo o absurdo labirinto burocrático para o estabelecimento das parcerias. A legislação vigente a respeito de convênios e parcerias é o maior entrave à realização de qualquer iniciativa dessa natureza. Se o Ministério e as orquestras não estivessem muito convencidos da necessidade desse projeto, não tenho dúvidas de que ele não teria acontecido. Pelo contrário, depois dessa experiência, hoje entendo melhor por que certas coisas nunca foram feitas antes.
Em termos de música sinfônica, sofremos de uma distorção enorme: Villa-Lobos está bem registrado, sobretudo após as gravações da Osesp, embora ainda estejam ausentes os cinco concertos para piano e orquestra. Em contrapartida, os demais compositores brasileiros historicamente foram desestimulados a escrever para orquestra, já que nunca (ou quase isso) teriam a chance de ouvi-las interpretadas por alguma orquestra brasileira em boas condições artísticas e técnicas. Conhecer o repertório dos 30 CDs com as obras e respectivas orquestras seria fundamental para avaliar com mais precisão o balanceamento de um projeto tão importante como este.
Gustavo de Sá: Este é um ponto em que tenho que discordar de você. A produção sinfônica dos compositores brasileiros, pelo menos até os anos 60 ou 70, é imensa. Era uma época em que havia obrigatoriedade de execução de música brasileira pelas orquestras, onde havia uma orquestra praticamente dedicada à música brasileira (a Orquestra Sinfônica Nacional), que estreava quantidades absurdas de obras nacionais... Numa pesquisa rápida e com algumas imprecisões, os números assombram: o catálogo do Almeida Prado contabiliza 68 obras para orquestra, da orquestra de cordas à orquestra sinfônica com coro, solistas e sei eu o que mais; Santoro deixou mais de 50 obras, que é mais do que todos os números de opus de qualquer dos compositores da Segunda Escola de Viena; o catálogo do Mignone tem 128 obras para orquestra, das miniaturas às enormes, o que é um número maior do que a produção inteira em todos os gêneros da maioria dos compositores do século 20. Leonard Bernstein, hoje um queridinho das orquestras mundo afora, deixou umas vinte e poucas obras sinfônicas, mesmo tendo as grandes orquestras do mundo literalmente ao alcance da mão. Bartók não escreveu muito mais do que isso. Prokofiev e Shostakovich deixaram uns 130 números de opus ao todo. A qualidade das orquestras brasileiras nunca foi um problema para os compositores. A maior parte da música sinfônica brasileira está é submersa, porque nunca foi editada, porque as partes se perderam, ou estão num manuscrito que nenhuma orquestra se anima a enfrentar, ou mesmo porque o material existe, mas está inacessível. São inúmeros os obstáculos, e tudo isso contribui para fazer a música brasileira cair no esquecimento. Isso explica que tenha sido muito difícil fazer a seleção das obras. Muita coisa boa e importante ficou de fora neste primeiro momento, mas chegamos ao limite do possível, tanto em matéria de recursos quanto de capacidade instalada para levar o projeto adiante. A lista dessa primeira etapa está fechada no que diz respeito aos compositores, mas a relação exata das obras pode variar um pouco. Acredito que haverá pequenos ajustes aqui e ali, sobretudo porque, em vários casos, não se conhece a minutagem exata das obras, e pode ser preciso excluir ou acrescentar alguma coisa para organizar os CDs.
Você poderia, então, adiantar a relação das gravações?
Gustavo de Sá: A relação das gravações é a seguinte. A Filarmônica de Minas Gerais, além do Nepomuceno, grava Almeida Prado (três obras para piano e orquestra), Lorenzo Fernandez (as duas sinfonias e o Reisado do Pastoreio), Carlos Gomes (aberturas, prelúdios e trechos orquestrais de óperas) e Henrique Oswald (as duas sinfonias e a Elegia). A Filarmônica de Goiás registra Claudio Santoro (as 14 sinfonias, alguns concertos e diversas outras obras menores em tamanho, em um total de 7 CDs), Edino Krieger (uma seleção de obras orquestrais), José Siqueira (o oratório Candomblé e outras obras orquestrais ainda a definir) e Guerra-Peixe (as sinfonias, suítes sinfônicas e outras obras orquestrais). A Osesp ficou com Villa-Lobos (os concertos para piano e para violoncelo), Mignone (Fantasias brasileiras, concertos e concertinos); Camargo Guarnieri (o ciclo completo dos Choros para instrumentos solistas e orquestra) e Almeida Prado (Sinfonia dos Orixás, algumas outras obras sinfônicas e sinfônico-corais).
Cronologicamente, qual foi a primeira – e a última – orquestra a aderir ao projeto?
Gustavo de Sá: O projeto começou com as filarmônicas de Minas e Goiás. A Osesp aderiu assim que terminou o projeto das sinfonias de Villa-Lobos.
Qual a proporção de música de compositores vivos neste projeto? Pergunto, porque em geral um projeto desses pararia em Santoro (que, aleluia, finalmente deverá ter registros decentes de suas sinfonias).
Gustavo de Sá: Como você vê, só temos Edino Krieger na lista. Esse foi um ponto delicado do projeto: incluir ou não os vivos? Não há dúvidas de que, sem eles, o projeto está incompleto. No entanto, duas coisas fundamentaram a nossa decisão de não incluir compositores vivos. A primeira é o tamanho do passivo a ser resgatado. Se pensarmos que obras básicas do repertório nacional como as aberturas de Carlos Gomes nunca tiveram uma gravação comercial de alto padrão no mercado internacional e que o maior conjunto de sinfonias de um compositor brasileiro, as de Claudio Santoro, não foi gravado nem pela metade (e que duas delas estão aguardando a estreia mundial até hoje, trinta anos depois da sua morte), fica claro por que demos prioridade aos compositores do passado. Nossa preocupação sempre foi a de mostrar uma escola brasileira de composição, justamente para mostrar que Villa-Lobos, sempre o centro de tudo, não foi um caso isolado, que houve muita coisa antes e muita coisa depois dele. E assim como vai faltar coisa antes dele (Miguez, Braga, Levy, o período colonial...), vai faltar coisa depois dele. O segundo ponto, claro, é que certamente cometeríamos injustiças graves. Não havendo, neste momento, condições de se gravar um volume expressivo de compositores vivos, de todas as tendências, as escolhas poderiam causar problemas sérios. Por que este e não aquele? Houve um consenso geral, porém, em se abrir exceção para o Edino, não apenas pela sua posição de decano dos compositores brasileiros, mas também pelo fato de ele ser o último representante do movimento Música Viva, que é uma etapa representada no projeto pelo Santoro e pelo Guerra-Peixe. Achamos necessário fechar esse capítulo antes de seguir adiante. Mas o ideal seria uma segunda etapa concentrada em compositores vivos, seguindo cronologicamente a partir de onde paramos.
Claro que é muito importante termos os CDs com as 100 obras gravadas – ferramenta de divulgação fortíssima sobretudo no mercado internacional. Mas um projeto desses, com a força do Itamaraty e da ABM, não deveria também induzir fortemente as orquestras brasileiras a tocarem estas obras, fornecer as partituras que deverão aparecer graças a bons trabalhos musicológicos – ou pelo menos ceder graciosamente as partes para as outras orquestras brasileiras, estimulando-as a tocarem estas obras? Sabe-se que o custo de aluguel das partes completas de uma obra sinfônica é em geral bastante alto. Vocês pensaram nisso?
Gustavo de Sá: Aí já é um ponto que extrapola as competências do Itamaraty, porque se trata de promoção da cultura dentro do país. O custo do aluguel é alto, mas é também o que remunera os compositores – se eles quiserem liberar, é com eles, mas eu não tenho o direito de pedir. Para a difusão no exterior, que é a nossa atribuição, nós pensamos nisso, sim. Desde o final de 2017 temos um contrato com a ABM, pelo qual o Itamaraty paga o aluguel do material de obras sinfônicas integrantes do Banco de Partituras da Academia para estimular o uso por orquestras estrangeiras. O material solicitado chega às orquestras por intermédio das nossas embaixadas, e com o aluguel já pago no Brasil. No ano passado, o primeiro de funcionamento desse contrato, mandamos obras nesse sistema para uns dez ou quinze países, se não me engano. Nosso projeto foi concebido para difundir a música brasileira no exterior; para funcionar adequadamente, ele acaba tendo impacto considerável (e desejável) no Brasil, uma vez que as obras são resgatadas em edições brasileiras, as orquestras participantes tocam essas obras e as gravações estarão disponíveis para o público brasileiro ouvir. O passo seguinte dentro do Brasil, porém, precisaria de outro programa, com outras instituições parceiras.
Qual o custo total e o volume já investido para este importante pontapé inicial?
Gustavo de Sá: O custo total do projeto está, no momento, estimado em R$ 700 mil. Certamente haverá alguns ajustes e algumas despesas acessórias, mas o investimento do Itamaraty será de menos de R$ 1 milhão no total até 2023. É nada, portanto.
Quais os CDs a serem lançados este ano? E para 2020?
Gustavo de Sá: Difícil saber, porque isso depende do cronograma de preparação das gravações e da estratégia de marketing da própria Naxos. Posso dizer quais são os planos de gravação para este ano: a Osesp grava o primeiro volume dos Choros, a Filarmônica de Minas Gerais grava os concertos do Almeida Prado e a Filarmônica de Goiás continua com as sinfonias do Santoro. O plano é lançar pelo menos um volume do Santoro este ano, em comemoração ao centenário, e mais algum título.
A Naxos entra com parte do investimento? Ou só entra (no bom sentido, claro) como “barriga de aluguel”, com todos os custos de produção e distribuição pagos? O Itamaraty entra nas mesmas condições em que funcionam outros projetos da gravadora com séries como a dos EUA?
Gustavo de Sá: A Naxos participa nesse projeto com a produção e distribuição, que é um investimento e tanto e que é o que mais nos interessa. E nós com a gravação e masterização. Não houve qualquer condição diferente para nós. Pelo contrário, a receptividade da gravadora ao projeto foi enorme desde o início.
Qual o custo médio total de cada CD?
Gustavo de Sá: O investimento médio do Itamaraty é de R$ 50 mil por CD, variando caso a caso, com eventuais aportes complementares menores por parte das orquestras.
Obrigado pela entrevista.
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