Maria João Pires e Daniel Barenboim: duas aulas magnas

por João Marcos Coelho 20/09/2020

A leitura de duas entrevistas recentes, publicadas nos dias 4 e 13 deste mês pelo jornal espanhol El Pais, convenceu-me de que os artistas de exceção obrigatoriamente ultrapassam os limites estreitos da capacitação técnica, do virtuosismo aparentemente infinito ao pilotarem seus instrumentos. E com isso legitimam socialmente a arte musical. O casal de notáveis atende pelos nomes de Maria João Pires, 75 anos, e Daniel Barenboim, 77.

A João, como os íntimos a chamam – e me permito aqui a ousadia –, é daquelas pianistas raras para quem fazer música é um alimento espiritual diário. Mais do que isso, busca criar mônadas utópicas, juntar em torno de si músicos jovens e outros experimentados, em volta dos instrumentos e das partituras, mas também da mesa e do dia-a-dia da convivência em grupo. Pois esta mestra admirável diz, com todas as letras, que “na arte, competir tornou-se uma doença”, que “os músicos se transformaram em máquinas”, que “a música nada tem a ver com isso”, que “ser artista consiste no contrário: assumir e aceitar todos os riscos”.  

Nessa altura fiquei maravilhado por perceber que ela é a mesma de quando realizei uma entrevista pouco menos de duas décadas atrás, quando liderava sua utopia particular no município de Castelo Branco, próximo à fronteira entre Portugal e Espanha, em Belgais, a sua querida Belgais. A tiracolo dela e seu braço direito no projeto àquela altura, o pianista brasileiro Caio Pagano abriu-me as portas daquela experiência memorável. “Perdemos”, diz ela, “a essência do sentimento criativo, que vem do amor, de ajudar, de desfrutar o estar-juntos, de fazer o outro feliz...” 

E na pandemia, onde temos necessariamente de nos manter isolados uns dos outros, ou melhor, de todos os outros, numa solidão que chega a doer? Pois esta artista prova que sabe também ser antenada com os novos tempos. Durante a pandemia, revela que está dando aulas pela internet. “Adoro fazer isso, desmonta a exclusividade, não sei quem assiste, não existem filtros.”

A propósito, ela considera perversa a influência norte-americana, que forma músicos desde as escolas ensinando-lhes a se odiarem uns aos outros.  

Barenboim qualifica seu recente concerto com a Filarmônica de Viena para cem pessoas como ridículo. Para ele, o futuro é sombrio. 

Nove dias depois, e no mesmo El Pais, uma suculenta entrevista com Daniel Barenboim. Como vive ele durante a pandemia? O jornal espanhol foi ouvi-lo em sua casa em Málaga. Classifica como “ridículo” o concerto que marcou sua volta aos palcos, recentemente, à frente da Filarmônica de Viena no Musikverein com apenas 100 espectadores. Diagnostica um futuro sombrio: “Muitas orquestras desaparecerão. Em relação à cultura, o problema é anterior: ela já havia perdido grande parte de seu valor. E continua sendo considerada por muitos políticos como algo elitista”. Cá entre nós, parece que ele está falando de nossa realidade local. “E isso não é nada além de resultado da ignorância deles.”

Que ele é uma metralhadora giratória, sabe-se bem. O que me chamou a atenção foram dois fatos: 1) ele voltou a tocar as sonatas de Beethoven em casa, peças que o acompanham desde os 7 anos, quando ainda morava em Buenos Aires, onde nasceu; 2) a certa altura, fala que existe, no trabalho do músico frente a uma partitura, “a memória mecânica e outra com pensamento; para reger preciso da segunda”. 

Durante a pandemia, Barenboim investiu seu tempo basicamente “na leitura das partituras” das sonatas de Beethoven – obras que ele toca desde a meninice. “Não me agrada chamar meu trabalho de interpretação, prefiro chamá-lo leitura. Não creio que haja interpretação – e, mesmo assim, penso que há muitos músicos que não sabem ler o texto. É como se lhes dessem um livro num idioma que não conhecem. Podem até soletrá-lo, mas não lê-lo, compreendê-lo. Um músico é um leitor, alguém que sabe ler notas e dar-lhes vida.”

A pianista Maria João Pires e o maestro Daniel Barenboim em concerto em Berlim [Divulgação]
A pianista Maria João Pires e o maestro Daniel Barenboim em concerto em Berlim [Divulgação]

Não por acaso, em seguida lembra o maestro Hans von Bülow (1830-1894): “Li há pouco uma grande biografia dele, de Alan Walker, bem escrita, detalhada e sem ornamentos: mergulhei nela... e incorporei seu pensamento e sua técnica a certas coisas de Beethoven, do qual voltei a gravar todas as sonatas. Um efeito do vírus. Bülow também as tocava de cor. Foi o primeiro a fazê-lo. Compositor, pianista, grande maestro: pegou a orquestra de Meiningen e a transformou em uma das melhores de seu tempo, antes de assumir a Filarmônica de Berlim”.

Foi a senha para eu retomar o livro da estante e examinar mais de perto o capítulo saboroso em que Walker trata dos cinco anos de Bülow em Meiningen, entre 1880 e 1885, cidade àquela altura com 9 mil habitantes. Acha pouco? Weimar, quando Liszt foi seu mestre de capela, nos anos 1850, tinha 12 mil habitantes. Pois Walker coloca como epígrafe do capítulo a seguinte frase do maestro hoje conhecido só porque foi casado com Cosima, filha de Liszt, que o traiu com Richard Wagner, o compositor que mais divulgou e promoveu em sua vida: “Aprenda a ler a partitura de uma sinfonia de Beethoven minuciosamente em primeiro lugar; e então você terá encontrado a sua interpretação”.

Logo ao chegar, Bülow estabeleceu o seguinte: entre 1º de outubro e 20 dezembro, os 44 músicos de Meiningen estudaram e ensaiaram apenas as nove sinfonias de Beethoven.  Neste período, escreve Walker, “os ensaios, fechados ao público, foram totalmente dedicados a Beethoven”. E entre 7 de novembro e 20 de dezembro a orquestra transformada apresentou as nove sinfonias em concertos públicos.

Para Hans von Bülow, olhar a orquestra nos olhos, com todos tocando de cor, permitia mais nuances durante uma apresentação.

O que mais chama a atenção de nós, habitantes do século XXI, é que todos tocaram de cor. “Olhar a orquestra inteira olho no olho, digamos, e vê-los também olhando-o atentos, lhe permitia cuidar de cada aspecto do fraseado e da nuance – uma impossibilidade óbvia quando cada um está com seu olhar fixo nas notas da partitura”, escreve Walker. Tornou-se famoso, na época, um mantra que o maestro repetiu muitas vezes em sua vida: “É melhor ter a partitura na cabeça do que a cabeça na partitura”. Ou seja, músicos que tocam de cor efetivamente compartilham com o maestro suas mais sutis intenções e instruções. Isso de fato faz a diferença. Egberto Gismonti, por exemplo, maravilhou-se com a Camerata Romeu, de Havana, justamente porque as instrumentistas, todas mulheres, tocaram de cor sua suíte Veredas. Gravou com elas para a ECM – e o resultado é espantoso. Libertar-se da obrigação de ler a partitura enquanto tocam pode bem ser uma ideia impossível nos dias atuais, em que as orquestras atuam como linhas de montagem industriais, com novos e pesados repertórios a cada semana. Mas pode ser um ideal a ser perseguido.

O que li em seguida na biografia de Bülow me entusiasmou ainda mais. Bülow pegou a orquestra com 36 músicos, mas contratou oito ainda em 1880 e chegou aos 48 no final do ano seguinte. Levou um trompista que tocara em 1876 na estreia da Tetralogia de Wagner em Bayreuth; e o clarinetista Richard Mühlfeld, que entusiasmou Brahms com sua musicalidade, a ponto de o compositor lhe dedicar suas duas sonatas e o maravilhoso quinteto. Bülow aplicou o que chamou de “Princípio Meiningen” a seu trabalho.  Walker: “Tentou enriquecer o som do grupo, e para isso introduziu o contrabaixo de cinco cordas e o tímpano de pedal. Também experimentou efeitos orquestrais diferentes. Para obter maior clareza na articulação da linha do baixo, ele às vezes dividia seus contrabaixistas: metade tocava legato, metade détaché”. 

Em suma, qualquer músico que pense em ser regente, ou mesmo já seja maestro profissional, precisa ler “Hans von Bülow – a life and times”, de Alan Walker.

P.S.: Sabem com quem Bülow aprendeu muitas das práticas que celebrizou como maestro? Com Liszt, com quem privou no período em que o húngaro dirigiu a orquestra de Weimar, na década de 1850. Com ele Bülow aprendeu a fazer ensaios de naipes separados. A mediocridade era regra nas execuções das orquestras europeias, escreve Walker em outro trabalho monumental, a biografia de Liszt. Ele lembra que em 1826 Habeneck fez quinze meses de ensaios com a Orquestra do Conservatório de Paris para colocar de pé uma execução decente da Sinfonia eroica de Beehoven. Walker considera Liszt decisivo para a evolução da direção de orquestra no século 19, elevando o patamar de qualidade das execuções. Um lado infelizmente esquecido hoje em dia. 

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