Viagem no tempo, entre música e cinema

por João Luiz Sampaio 01/10/2019

Theatro Municipal do Rio de Janeiro promove estreia latino-americana da ópera Orphée, de Philip Glass, baseada em filme de Jean Cocteau

Poeta e músico, o Orfeu da mitologia apaixona-se por Eurídice. Os dois se casam. No entanto, ela, fugindo dos avanços de Aristeu, acaba morta. Orfeu resolve descer ao mundo inferior para salvá-la. A beleza de sua música comove Perséfone, esposa de Hades, o deus dos mortos. E Orfeu tem a chance de trazer Eurídice de volta aos vivos, com uma condição: ele não poderia olhar o rosto da amada até que estivessem sobre a terra.

Estamos agora nos anos 1950. O poeta Jean Cocteau, símbolo da vanguarda francesa, resolve reinterpretar, num filme, a história de Orfeu. Vivido pelo ator Jean Marais, ele é agora um famoso poeta, testemunha de um acidente de trânsito que mata Cégeste; passa então a ser acompanhado de Princesa, que o leva a um mundo de sonho, entre vida e morte, no qual poemas da Revolução Francesa tocam em um Rolls Royce misterioso e o poeta contempla em transe a vida e a relação com a mulher, Eurídice.

Década de 1990. Fascinado pelo que define como a capacidade de Jean Cocteau de dar carne e sangue a uma história atemporal, o compositor norte-americano Philip Glass resolve escrever a ópera Orphée, baseada no filme dos anos 1950, conferindo roupagem operística aos diálogos do roteiro original – e prestando uma homenagem a Gluck e seu Orfeu e Eurídice, talvez a mais célebre adaptação em forma de música do mito grego.

Cena do filme Orfeu, de Jean Cocteau [Reprodução]
Cena do filme Orfeu, de Jean Cocteau [Reprodução]

Na linha do tempo, a próxima parada localiza-se neste mês, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, quando a obra de Glass ganha sua estreia latino-americana em uma nova produção capitaneada pelo diretor Filipe Hirsch e pela maestrina Priscila Bomfim. “É fascinante a ideia de que, em 2019, possamos produzir uma obra que estabelece uma viagem pelo tempo que remonta à mitologia, à arte dos anos 1950 e à música norte-americana do século XX, passando de quebra pelo século XVIII de Gluck”, diz ela.

Ao fazer seu filme, Cocteau buscava discutir alguns temas específicos. Os três pontos básicos, explicou, são: as mortes sucessivas pelas quais o poeta precisa passar para transformar-se em definitivo; a imortalidade; os espelhos: nós nos vemos envelhecer perante eles, que nos aproximam da morte. Glass, que conheceu o filme em Paris ainda na juventude, fascinou-se pela história, chegando a dizer que os personagens imaginados por Cocteau eram as pessoas com quem convivia em Nova York. Todavia, o interesse não era apenas voltado a Orfeu, e sim ao poeta e a sua personalidade artística: inspirado nele, Glass escreveria ainda La belle et la bête e Les enfants terribles

“É uma obra muito rítmica, capaz de criar diferentes ambientes sonoros”
Priscila Bomfim, maestrina

“Glass segue o filme de Cocteau de maneira muito fiel”, diz o barítono Leonardo Neiva, que vive o protagonista na montagem carioca. “A direção de Cocteau é algo impressionante… Os recursos que ele utiliza… E Glass mantém a estrutura das cenas, reproduz os diálogos e recria a atmosfera do filme, o caráter quase surreal, com a música, que ajuda a estabelecer essa relação com o original”, explica. Para Bomfim, isso gera possibilidades interessantes de interpretação. “A música é como se fosse a trilha para o filme do Cocteau, mas também para um novo filme que vamos fazer aqui no Rio, o qual será dirigido por Hirsch no palco”, sugere. 

A ideia de incluir Orphée na temporada deste ano partiu do diretor artístico André Heller-Lopes, que, após trabalhar em uma montagem da ópera em Londres, na Royal Opera House Covent Garden, vinha já há alguns anos tentando encená-la no Brasil. “Achei que, no Municipal, seria um título perfeito dentro de uma temporada marcada pela dramaturgia voltada aos heróis, na qual já tivemos Condor, Os contos de Hoffmann e Fausto e teremos ainda Eugene Oneguin”, explica o diretor.

Para Heller-Lopes, a música de Glass é hipnótica. Neiva concorda. “É uma atmosfera quase de transe, que, no caso específico do Orfeu, se apoia em uma escrita vocal que recusa o cantabile, é mais histérica, buscando mesmo gerar o incômodo; afinal, estamos falando de um personagem depressivo, em crise”, explica. Bomfim, por sua vez, chama atenção à necessidade de se priorizar o aspecto teatral da partitura, da qual ressalta a diversidade. “É uma obra muito rítmica, é minimalista, sim, mas capaz de criar diferentes ambientes por meio de enorme diversidade rítmica, de texturas.” 


AGENDA
Ópera Orphée, de Philip Glass
Felipe Hirsch – direção cênica / Priscila Bomfim – direção musical
Dias 25, 26, 27, 29 e 31, Theatro Municipal do Rio de Janeiro