A arte erudita para as massas

por João Marcos Coelho 16/11/2024

Arnold Schoenberg e seu amigo David Josef Bach abraçaram o socialismo ao pensar sobre a música

Schoenberg foi um aguerrido militante da esquerda socialista na Viena na primeira década do século XX. Como? Schoenberg socialista? Mais ainda: seu Tratado de harmonia, publicado em 1911, também respira ares libertários de esquerda. Quem me chamou a atenção para isso, no caso do tratado, foi o musicólogo argentino radicado em Paris Esteban Buch, num artigo de 2003 – período em que ele trabalhava num de seus livros mais preciosos, O caso Schoenberg: nascimento da vanguarda musical, publicado três anos depois, pela Gallimard.

Segundo Buch, a analogia mais consistente e detalhada do tratado é uma metáfora política: “A tonalidade é para Schoenberg um sistema comparável a um Estado, onde a tônica é um rei, e cada acorde é um ator que busca constantemente tomar o poder, ou seja, tornar-se, por sua vez, uma tônica. Essa imagem política se articula com outra, biológica, que faz dos acordes construídos sobre os harmônicos de uma nota outro tanto de ‘descendentes’ desta última e da lacuna entre os modos menor e maior a contrapartida da diferença sexos. A tendência histórica da tonalidade para sua dissolução nada mais é que o colapso deste Estado feudal ou dinástico de tornar-se ingovernável – não por causa de atores externos, mas seguindo a crescente importância dos ‘acordes vagabundos sem filiação e nacionalidade: forças anárquicas inscritas nos fundamentos do sistema’.”.

É verdade que dos anos 1920 em diante ele relativizou tal postura. Mas o que nos interessa é saber como ele abraçou tão intensamente a causa socialista naquele momento

Ora, o Tratado se nutre dessa analogia e é uma espécie de ponto de chegada de uma história de vida e criação marcada por uma posição claramente política. Ele abraçou uma postura socialista militante. Nascido em 1874, viveu seu engajamento mais radical naquela década. É verdade que dos anos 1920 em diante relativizou tal postura, lembra Buch. Mas o que nos interessa é saber como ele abraçou tão intensamente a causa socialista naquele momento. E, antes que você se espante mais, vamos clarear a história. Isso aconteceu muito porque teve um grande amigo especial, desde a adolescência: David Josef Bach, hoje citado em uma ou outra notinha de pé de página de calhamaços dedicados a Schoenberg. Ambos nasceram em 1874. As coincidências não param por aí. Num dia 13: Bach em agosto, Schoenberg em setembro. Uma amizade que se transformou em laços familiares quando o primo do compositor casou-se com Eva, irmã de Bach.

Só existem artigos dispersos – e poucos – sobre Bach e, que eu saiba, só um livro: Eredità della musica, de Piero Violante (2007, Palermo, editora Sellerio). Violante esmiúça sua trajetória como jornalista; crítico musical do Arbeiter Zeitung, jornal socialista de Viena; dirigente da social-democracia austríaca; e, sobretudo, responsável pelo programa cultural do partido. 

Foi assim que Bach levou Schoenberg a batalhar por anos “levando a arte erudita às massas”. Jared Armstrong, que concebeu e toca o site Red Vienna, dedicado a Bach, conta que, embora formado em filologia e filosofia na Universidade de Viena, sua maior paixão era a música: “Em 1905, conseguiu uni-la a seus princípios social-democratas ao conceber e realizar os Arbeiter Sinfonie Konzerte. Por meio de sindicatos, os trabalhadores podiam adquirir ingressos com desconto para concertos orquestrais”. Ampliou o escopo dando acesso a produções teatrais nos anos pós-Primeira Guerra Mundial, através do Kunststelle [centro de artes] vienense. Lá os trabalhadores podiam assistir a criações de Goethe, Schiller, Shakespeare, John Galsworthy, Bernard Shaw etc. “O empreendimento de Bach floresceu, até que o crescente poder político da extrema direita o encerrou em 1933.”

Em 13 de agosto de 1924, o compositor enviou um cartão para o aniversariante do dia, cumprimentando-o pelos 50 anos (que ele mesmo completaria no mês seguinte) com estas palavras: “Caro Bach, então nos tornamos velhos rapazes, que ainda depositam todas as esperanças em jogar bolinhas de gude e cama de gato. Velhos rapazes de verdade, não queremos crescer e nos tornar o tipo de homens para quem nada acontece em sonhos que não possa ser compreendido quando acordados: não queremos acordar e reconhecer a inutilidade de tais ilusões; ainda preferimos voltar para casa com roupas rasgadas e joelhos ralados para uma mãe que repreende, mas entende. Ainda depender de tal compreensão e não mais recebê-la obriga ao reconhecimento de nossa idade: quem agora nos repreende, velhos rapazes, acabará sendo ridicularizado”.

Por isso, ambos desenvolveram uma extraordinária resiliência na luta por seus ideais. Volto ao artigo de Buch. Mais que liberdade de estilo, ele diz que o Tratado é “habitado por uma rede de metáforas demasiado importantes e sistemáticas para ser reduzidas a uma simples anedota”.

Infelizmente não tenho espaço para esmiuçar os paralelos de Schoenberg. A tônica é chamada de “Napoleão”, “alfa e ômega”; a quinta, “arrivista”, pronta para atacar o imperador. E assim por diante.

Neste panorama, a suspensão da tonalidade dentro de um Estado-nação autocrático é inevitável. E o que surge no horizonte não é infelicidade, caos ou decadência, longe disso; é uma utopia. Nas palavras de Schoenberg, a utopia de “uma harmonia sem passaporte, sem bilhete de identidade, sem nenhum documento que mencione o país de origem ou o propósito da viagem”. 

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A fagotista Ariana Mendonça [Divulgação]
A fagotista Ariana Mendonça [Divulgação]

 

Arnoldo Schoenberg [Reprodução]
Arnoldo Schoenberg [Reprodução]

 

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