‘Prism’: vida e morte em uma ópera feita de fragmentos

por João Luiz Sampaio 06/09/2019

Quando Prism, ópera de Ellen Reid em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo, começa, vemos um quarto no qual vivem trancadas duas mulheres, Lumee e Bibi, mãe e filha. Bibi está em meio a uma crise nervosa, da qual sai com a ajuda de Lumee e de um mantra formado por palavras aparentemente sem sentido. 

Suas pernas, ficamos sabendo em seguida, estão paralisadas ao que tudo indica por uma doença da qual, no entanto, nada ainda sabemos. Dois mundos são então apresentados ao público, dois mundos etéreos, feitos apenas de luz. Dentro do quarto, o amarelo evoca a possibilidade de tranquilidade em meio ao que nos parece uma angústia sem fim; fora do quarto, o azul simboliza uma ameaça, algo que machucou Bibi no passado. O quarto é o Santuário, o lugar seguro; fora dele, há o perigo.

Não é apenas o texto de Roxie Perkins que sugere essa leitura – há também a música de Reid. A ansiedade, a dor, a memória, cada elemento em cena ganha música própria, com temas que vão se reproduzindo, misturando, em um resultado violento, angustiante. Nesse primeiro momento, o amarelo se reveste de delicadeza; o azul é introduzido por um tema insidioso e ameaçador das cordas.

Bibi resiste à medicação que a mãe lhe oferece, o que provoca em Lumee irritação. Elas vão dormir. Mas a jovem inicia uma ária em que tenta relembrar como era o mundo de antes. Há a sugestão de um lirismo, mas Bibi arrasta-se para fora da cama. Vai até o remédio; o coro evoca o “azul”; com a droga em mãos, ela parece buscar o suicídio, o desejo de morte, o desejo de um fim. Fim do sofrimento, fim da memória.

A dualidade entre amarelo e azul começa, então, a se desfazer – e o texto ganha em complexidade. Se a morte é a libertação do presente e o retorno ao lirismo de um tempo passado, não significa então desejo de vida? O azul assusta Bibi, mas também a atrai. “Eu toquei o azul”, ela diz, enquanto começa a recuperar o movimento das pernas. Será que o azul é então vida e não ameaça? 

Ópera Prism [Divulgação / Larissa Paz]
Ópera Prism [Divulgação / Larissa Paz]

A mãe acorda, e sua presença enfraquece mais uma vez as pernas da filha. O que exatamente a está matando? A doença ou o remédio? Na música e no texto, enfrentar o azul, a memória do que a atacou, começa a soar como o caminho. Bibi parece acreditar que sim. E chegamos portanto ao fim do primeiro ato, quando o desejo de vida da jovem passa pela necessidade de enfrentar a lembrança.

A divulgação de Prism fala em um título que trata de abuso sexual – e não é, portanto, difícil imaginar que é disso que se trata a violência sofrida por Bibi. Mas o que vem no segundo ato na verdade extravasa o ato violento – e explicar o contexto em que ele acontece, e como isso está relacionado à relação entre mãe e filha, talvez seja um spoiler indesejado. Reid, afinal, coloca ênfase nesse momento fundamental da narrativa: com sua música, constrói um clímax que nos leva à revelação. Também no texto o segundo ato será capaz de nos remeter a sentidos que, no primeiro ato, ainda não poderiam ser compreendidos. E esse jogo de referências cruzadas, de fragmentos que vão se unindo aos poucos, é um dos trunfos da dramaturgia de Prism.

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A violência contra a mulher não é um tema novo na história da ópera. Mas, como chamou atenção Andrei Reina em uma entrevista com a compositora, a ópera de Ellen Reid começa onde as outras terminam – ou seja, não está preocupada em explicitar o ato violento, mas em mostrar as consequências que ele traz para a mulher que o sofre. 

Prism não é, porém, uma história de superação, não em um sentido superficial. O trajeto de Bibi é o de alguém que percebe ser apenas por meio do contato com o trauma que se pode superá-lo. É disso que nos fala a ópera – da necessidade forçada de uma mulher de redescobrir a si mesma em um mundo que a transfigurou: Bibi precisa entrar em contato com esse azul que machuca para poder superá-lo.

Mas esse trauma não é banal. É o resultado de um ato de profunda violência. E a Bibi que chega ao final da ópera é uma Bibi, na interpretação da soprano Anna Schubert, dilacerada, também feita de fragmentos. Fragmentos que, no entanto, organizam-se, ou tentam se organizar, de outra forma, para um novo começo.

É uma caracterização realmente impressionante, assim como é a Lumee da mezzo soprano Rebecca Jo Loeb, em sentido oposto: uma predadora que não se movimenta, fechada em si mesma; que faz da morte ainda em vida o remédio para uma culpa talvez grande demais para suportar.

Ambas têm a seu favor a escrita vocal de Reid. Se a música da ópera se transforma ao longo da narrativa, lançando mão de diferentes estilos de acordo com a exigência dramática de cada cena, seu trabalho com a voz é em geral bem comportado, tanto para as duas solistas como para o coro, que tem enorme importância na visão sonora de Reid, recriada em grande intepretação pelos cantores do Coral Paulistano. Para a orquestra, comandada por um Roberto Minczuk muito mais à vontade do que no repertório operístico tradicional, há muitas passagens virtuosísticas, superadas com vigor e senso teatral pelos músicos da Orquestra Sinfônica Municipal. 

Prism é uma obra forte, violenta, que se constrói a partir de simbolismos, habilmente trabalhados pelo diretor James Darrah em sua concepção cênica. Está nessa aparente contradição o que ela tem de mais interessante. Para falar de um tema assustadoramente atual – a violência contra a mulher –, Ellen Reid evita simplificações. Mergulha em uma investigação sobre o humano. Uma investigação que gera desconforto. Como deveria mesmo ser.

Prism segue em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo até o dia 14 de setembro; clique aqui e veja mais informações no Roteiro do Site CONCERTO.

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